sexta-feira, 3 de junho de 2016

Temer piscou para o Judiciário - Cristian Klein

• Reajuste salarial bilionário aproveita fragilidade política

- Valor Econômico

"Renan, eu recebi aqui o Lewandowski, querendo conversar um pouco sobre uma saída para o Brasil, sobre as dificuldades, sobre a necessidade de conter o Supremo como guardião da Constituição. O Lewandowski só veio falar de aumento, isso é uma coisa inacreditável".

Foi assim que o presidente do Senado, Renan Calheiros, reproduziu a seu interlocutor - o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado, delator na Lava-Jato - a conversa sobre a crise política que a presidente Dilma Rousseff tivera com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski.


Nada de assuntos republicanos. Em meio à tempestade, com as águas grossas da crise econômica arrastando empregos pelo caminho, o presidente da mais alta Corte do país só enxergava, pelo relato, a oportunidade de garantir o próprio bote salva-vidas.

Pois o tão perseguido aumento do Judiciário foi aprovado pela Câmara, numa noite em que o governo interino e sua base parlamentar resolveram abrir um pacote de bondades com impacto de, pelo menos, R$ 58 bilhões, incluindo reajustes para carreiras do Executivo, Legislativo, Ministério Público e Defensoria Pública. É o bote, ou o trem da alegria liderado pelo Supremo.

Os subsídios dos ministros do STF subirão de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil, um reajuste de 16%, num momento em que a crise econômica rebaixa o rendimento médio real do brasileiro (-3,3% em um ano) e eleva o desemprego a 11,2% (11,4 milhões de pessoas), de acordo com a Pnad Contínua, divulgada nesta semana pelo IBGE.

O aumento para os magistrados, como se sabe, tem efeito cascata pois os subsídios servem de teto salarial para todo o funcionalismo público, embora em, muitos casos, o teto seja solar, o que é menos aparente. Inúmeras formas de se burlar o limite são utilizadas, com penduricalhos de gratificações e auxílios ou mesmo a acumulação de salários de funcionários cedidos a outra esfera da administração.

Os interesses das corporações estão a léguas da realidade da população ou das contas da União. Nem o anunciado déficit fiscal de R$ 170 bilhões foi capaz de barrar um apetite que não acompanha mudanças mais estruturais do país. Nos últimos 15 anos, como costuma lembrar o economista Ricardo Paes de Barros, a desigualdade no Brasil caiu progressivamente na iniciativa privada, mas ficou estagnada no setor público, graças aos altos salários da burocracia estatal. É do professor titular no Insper que vem a sugestão: se o país quer cortar gasto que não vai ter nenhum impacto sobre pobreza e só vai reduzir a desigualdade, que se corte então salário do setor público.

Mas ocorre o contrário. Há aumentos, puxados por um Judiciário que se encaixa na imagem do que um dia Raymundo Faoro, em "Os donos do poder", descreveu como o estamento burocrático presente na nossa herança ibérica, patrimonialista.

Os políticos - donos transitórios do poder - passam, mas é a alta burocracia estatal que extrai vantagens que outrora eram chamadas de regalias, assim denominadas por serem concedidas aos reis e a seus amigos. No processo histórico, o controle do Estado mudou de mãos. Uma ideologia bem construída permite que algo como uma vontade geral, ou do povo, seja associada à noção de soberania.

Há muitos obstáculos entre a vontade utópica de uma população inteira e sua realização. Na prática, o que vale é a mobilização dos interesses organizados. E algumas instituições ou categorias profissionais, como as do Judiciário, costumam saber bem o momento de entrar em ação para defender suas bandeiras.

Um dos casos mais emblemáticos ocorreu durante a eclosão das manifestações de junho de 2013, um fenômeno, de resto, de difícil explicação até hoje. Mas estava lá, entre as principais reivindicações, a derrubada da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que limitaria os poderes de investigação criminal do Ministério Público. Não era só pelos 20 centavos que a multidão invadia as ruas, mas entre os modestos resultados concretos das manifestações figura a derrubada da PEC 37, acompanhada de perto, dias depois, por promotores e procuradores que tomavam as galerias da Câmara, em Brasília.

Para se entender como um reajuste com impacto de ao menos R$ 58 bilhões em quatro anos passa num momento de recessão e de contas públicas desequilibradas pode-se argumentar que algumas categorias não tiveram aumento nos últimos anos.

Pode-se também ter a compreensão de que tal medida só é possível em condições de extrema fragilidade de quem pode aprová-la: os políticos.

São faces da mesma moeda. O avanço de prerrogativas das corporações do Estado - e sobretudo as carreiras do Judiciário e da advocacia pública - se dá na exata proporção do desgaste da classe política, seja por incompetência ou escândalos de corrupção. Se a força do político vem do voto, a das corporações se potencializa com a impopularidade dos mandatários.

Ainda que já estivesse previsto no orçamento de Dilma, é na gestão do presidente interino Michel Temer - cuja missão é cortar despesas, para não incorrer no mesmo equívoco do desequilíbrio fiscal da petista - que os interesses das corporações foram atendidos.

Temer, assim como Dilma, está fraco. Sua justificativa para o reajuste salarial bilionário que contradiz a austeridade exigida pela crise não conseguiu esconder a vulnerabilidade. É preciso para "pacificar" a relação entre o governo e os servidores. Será que Temer terá o cuidado de pacificar a relação com o movimento sindical ao tentar mexer na Previdência e nos direitos trabalhistas da CLT?

Enquanto não confirmar a posse do mandato-tampão, com o afastamento definitivo pelo impeachment, o pemedebista é recalcitrante, não contraria interesses, sobretudo os mais articulados, organizados e poderosos. Não deve ser irrelevante o fato de que Lewandowski seja o responsável por presidir o julgamento de Dilma no Senado.

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