sábado, 27 de agosto de 2016

A falta que faz uma bem compreendida hegemonia - Marco Aurélio Nogueira*

• Sem ter intenção, Dilma dá passos que coonestam a legalidade do impeachment

- O Estado de S. Paulo

Agosto se encerrará trazendo consigo a conclusão do impeachment, que há quase um ano tem (des)organizado a política brasileira. É o que prevê o cronograma definido pelo ministro Ricardo Lewandowski, encarregado de presidir a fase final do processo. Eventuais acidentes de percurso poderão empurrar a decisão para setembro e criar algum suspense de última hora, mas não mais que isso. O mais provável é que Dilma Rousseff seja afastada em definitivo.

De um modo ou de outro, o processo se concluirá enterrando a tese do “golpe”. O comparecimento da acusada a seu julgamento será um jogo de cena, que em boa medida tem efeito bumerangue. Quererá a presidente confrontar heroicamente seus algozes, constrangê-los e expô-los a uma opinião pública sensibilizada pelo drama presidencial? Estará interessada em pavimentar alguma estrada para seu próprio futuro político? Ou a ideia não vai além da manutenção de uma narrativa para justificar os erros que cometeu durante seu mandato e que terminaram por impulsionar seu impedimento?


A conduta da presidente é cercada de confusão. Ela insiste em voltar, mas promete convocar um plebiscito para que a população decida se quer ou não antecipar eleições. Ou seja, quer voltar para então renunciar, juntamente com o vice-presidente e todo o Congresso Nacional. É uma forma de vestir a carapuça. Quer voltar para desistir de governar. Não faz sentido.

Sem ter intenção, Dilma dá passos que coonestam a legalidade do impeachment e não empolgam, posto que discutíveis demais e erráticos. Mesmo que consiga sucesso em se apresentar como alvo de uma “flagrante injustiça”, isso terá pouco impacto no processo.

Curioso o modo como o impedimento evoluiu: nenhuma resistência expressiva a ele, nenhum abalo na institucionalidade do País, nenhum trauma na governabilidade, nenhum obstáculo para que se passasse a um governo interino, que vem governando em completa normalidade. O episódio, por inusitado, ajuda a que se entendam algumas coisas.

Não houve “hegemonia petista” no ciclo Lula-Dilma. O partido não tomou as providências práticas, teóricas e institucionais para elaborar uma política com que dirigir ética e culturalmente a sociedade. Afirmou sua força sem ampliar sua capacidade de agregação e persuasão pública.

Se tivesse havido hegemonia nesse sentido, ou seja, bem compreendida, Dilma teria sido controlada e ter-se-ia conduzido segundo um plano referendado por um bloco coeso de forças afinadas entre si. Alguma dificuldade adicional o impedimento teria conhecido e o novo governo teria encontrado mais pedras pelo caminho. O que há hoje de resistência a ele vem do chamado “centrão”, ávido para manter viva a chantagem como forma de atuação política.

Com ou sem Eduardo Cunha, essa área mostra que não será facilmente “desidratada”, depois de ter sido devidamente engordada pelas práticas petistas-peemedebistas dos últimos anos. Se hegemonia tivesse havido, o PT e os partidos que o orbitam teriam conseguido fazer mais do que apelar à narrativa tosca do “golpe”: a reação teria sido sustentada política, moral e intelectualmente, teria dado um norte ao País, em vez de se reduzir ao esperneio a que se assistiu. Tivesse havido hegemonia, em suma, dificilmente teria havido impeachment.

Ainda que revestidos de elevado poder simbólico, presidentes não são tão importantes quanto se pensa. Podem ser substituídos sem dor, sem pena e sem glória, podem governar só de modo protocolar, delegando suas funções a terceiros, podem meter os pés pelas mãos sem que nada de mais grave aconteça. Sistemas de governo dependem mais de procedimentos institucionalizados, regras e ritos, do corpo estável de servidores, da dinâmica técnica e política que o condiciona, do que da conduta dos ocupantes eventuais de cargos estratégicos. Não é que não tenham uma função e não possam desempenhar papel de destaque: é que os sistemas vivem sem eles.

No mundo de hoje – marcado pela vida líquida, pela movimentação frenética de mercadorias, capitais, pessoas e informações, pelas redes globais e pela financeirização que fizeram o mercado confrontar com sucesso os Estados nacionais, pela corrosão da política instituída – os fluxos do poder são menos relevantes do que o poder dos fluxos, como escreveu certa vez Manuel Castells. Não importa tanto o que os governantes dizem e fazem, nem suas promessas, mas sim os movimentos e as ações que estão em volta deles, a percepção que se tem do que fazem. Importa menos o que fala o poder e mais o que se diz a respeito das falas do poder. Nesse contexto, presidentes podem, na melhor das hipóteses, atuar como coordenadores de apoios e decisões. Se tiverem talento e molejo político, animam o conjunto. Se não tiverem, convertem-se em figurantes inconvenientes e terminam por ser deletados.

Falando de modo provocativo: o Brasil poderia viver eternamente em processo de impeachment que nada de muito grave aconteceria. Seria a introdução de um tipo anárquico e informal de “parlamentarismo”, uma jabuticaba a mais para compor a mesa nacional.

Os lamentos de Michel Temer e equipe de que não podem fazer muito enquanto a interinidade não for substituída pela efetividade são lamentos de caráter justificatório, compreensíveis como recurso argumentativo para arrumar a casa e pressionar os recalcitrantes. A partir do desfecho do impeachment – e desde que confirmada a destituição de Dilma –, os lamentos não terão maior serventia. Precisarão ser substituídos pela apresentação clara e vigorosa de um programa de governo que não se restrinja ao “ajuste fiscal” – esse mantra da atual política mundial – e se mostre qualificado para empreender uma inflexão reformadora, em especial na política, que prepare o País para o futuro.

Quando esse dia chegar, chegará a hora de o governo Temer mostrar de fato a que veio.
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* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política e Coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp

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