domingo, 14 de agosto de 2016

Morreu, é óbvio - Sérgio Besserman Vianna

- O Globo

A genialidade de Nelson Rodrigues criou a expressão “Óbvio ululante”. É óbvio, visível, nítido, ulula na sua frente, mas, ainda assim, não é percebido, é ignorado.

O mesmo, de forma transversa, aparece na sabedoria popular: “O pior cego é o que não quer ver”. Todo cego que é consciente de sua cegueira quer ver, mas todos nós, humanos, sem exceção, por medo, culpa, interesse, conservadorismo, neurose, optamos inconscientemente por não querer ver algo, geralmente alguma verdade bem evidente sobre nós mesmos, que não reunimos a coragem para enfrentar ou que optamos pelo conforto de não mudar.

Nós, brasileiros, nessa quadra da história nacional, somos, por medo, interesse, opção pela zona de conforto ou sentimento de impotência, cegos que não queremos ver.

Reduzimos o debate a algo raso e a uma busca de culpados pela profunda e sistêmica crise nacional. Intelectual e emocionalmente, temos nossas opiniões sobre quem são os bandidos da vida pública e quem são os que podem nos levar à solução de nossos problemas. Mas creio que, no fundo, estamos todos na posição do cego que não quer ver.


Não se trata apenas do reducionismo decorrente da polarização política, seja no diagnóstico da crise, seja ao tentar justificar bandidagens político-eleitorais com o argumento, quase integralmente verdadeiro, de que todos as praticam.

Penso, ao contrário, que esse reducionismo decorre do sentimento de impotência e consequente covardia de todos nós para apontar, sem hesitação, o óbvio que está ululando à nossa frente: a República que criamos em 1988 morreu, seu figurino não cabe no século XXI.

A Lava-Jato revelou mais do que a organização criminosa que operou para minar o fundamento democrático da alternância de poder. A essa altura, só cegos que não querem ver podem deixar de enxergar o óbvio ululante de que o sistema político-eleitoral brasileiro está morto, podre e zumbi, mordendo o pescoço da nação para chupar seu sangue.

Só um sebastianismo muito renitente pode explicar a esperança de enfrentar a gravíssima crise econômica e encontrar um caminho de produtividade e bem-estar crescente para o Brasil com esse modelo eleitoral apoiado quase exclusivamente no poder do dinheiro e o sistema político quase nulo na capacidade de transformar ideias em ação.

Como disse o primeiro grande escritor negro americano, James Baldwin: “Nem tudo que se enfrenta pode ser transformado, mas nada do que não é enfrentado será transformado.”

O rei morreu, viva o rei. A República morreu, viva a República. É hora do parto, não de esperar Dom Sebastião.

Parafraseando o grande poeta espanhol Antonio Machado quando a ditadura franquista agonizava: “Já há um brasileiro que quer viver e a viver começa, entre um Brasil que morre e outro Brasil que boceja. Brasileirinho que vem, ao mundo te guarde Deus. Um dos dois Brasis vai gelar seu coração.”

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Sérgio Besserman Vianna é presidente do Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro

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