segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Sem sentido – Editorial / O Globo

• Decisão do STF tira do alcance da lei um número grande de maus políticos

O Brasil patina num contencioso político (em especial, o partidário) que, tanto quanto os ajustes na economia, precisa ser enfrentado com urgência. São demandas cujo equacionamento se impõe como missão urgente, de modo a enfrentar a baixa qualidade da representação no Legislativo e no Executivo, terreno onde germinam males crônicos (corrupção, assistencialismo, ações de toma lá dá cá etc.), que contaminam o Congresso e, país afora, casas legislativas, governos estaduais e prefeituras.

Nessa pauta, a revisão das regras de formação de partidos, com a adoção de cláusulas de desempenho, e de seu funcionamento (proibição de coligações em eleições proporcionais, por exemplo) terá o sadio efeito de depurar o cenário político nacional. No entanto, são temas que, por mais que se imponham à saúde política do país, enfrentam fortes resistências.

Há proposições nesse sentido no Congresso, mas não é fácil aprová-las. Por outro lado, o país já contabiliza avanços importantes, ao menos no campo da legislação eleitoral — dos quais a aprovação da Lei da Ficha Limpa, uma iniciativa exógena nos tradicionais trâmites de projetos que chegam ao Congresso, é a sua mais notável expressão. Criada por iniciativa popular, desembarcou no Legislativo em Brasília ancorada em mais de um milhão de assinaturas de apoio, uma demonstração de força que desestimulou notórios grupos de parlamentares a desoxigená-la.

A lei, aprovada em 2011 sob aplauso da sociedade, chancelada pelo Supremo Tribunal Federal, é eficaz antídoto contra a presença na política de personagens que a desqualificam e degradam. Com ela, a Justiça Eleitoral ganhou um poderoso instrumento legal para barrar a candidatura de condenados em segunda instância. Ressalte-se, como positivo, o cuidado que a Ficha Limpa teve de buscar o anteparo de sentenças formuladas por colegiado de juízes, uma forma de a legislação não servir a ações de má-fé, ou a perseguições e picuinhas cartoriais eventualmente estimuladas para prejudicar inimigos políticos em tribunais de primeira instância. É um dispositivo avançado, cujo alcance saneador parecia ser questão vencida. Portanto, surpreende a decisão da maioria do STF de, ao julgar um processo, condicionar o enquadramento de prefeitos e governadores na lei somente após sanção de maioria qualificada de câmaras municipais e assembleias legislativas a processos de desaprovação de contas. Até então, a Ficha Limpa os alcançava tendo como motivo bastante — e justo, por criterioso — a condenação de suas gestões orçamentárias por tribunais de contas.

Isso equivale, na prática, a tirar do alcance purificador da lei esses maus políticos. É da (má) tradição da política brasileira o controle de casas legislativas regionais pelo chefe do Executivo, uma dominação que se dá por diversas formas — em geral, no âmbito de deletérias práticas que fomentam a corrupção. A interpretação do Supremo é passível de recurso, portanto de nova abordagem do pleno da Corte. É a chance de o tribunal rever essa incompreensível desidratação da lei.

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