terça-feira, 8 de novembro de 2016

Em pratos limpos

• Crise do estado fecha três restaurantes populares que serviam 7.500 refeições por dia

Caio Barretto Briso - O Globo

“Ué, cadê todo mundo?”, pergunta o faxineiro José Ribas, de 55 anos, diante da porta fechada. Logo chegam outros, trabalhadores da cidade inteira e uma legião de aposentados, todos preocupados com o fechamento do Restaurante Cidadão Betinho, na Central do Brasil.

— Acabei de vir do restaurante do Méier. Fechado também — conta o pedreiro Elcio Duarte, de 62 anos.

Três restaurantes populares — na Central, no Méier e na Cidade de Deus — não abriram ontem e ninguém garante quando isso voltará a acontecer. Eles já tinham sido fechados em julho, mas a prefeitura decidiu assumi-los até o fim do ano para evitar a interrupção do serviço, que serve 7.500 almoços a R$ 2 todos os dias. O município afirma que está à espera da minuta do contrato enviada ao estado para assumir os oito restaurantes na cidade. Por isso, diz a prefeitura, é que o pagamento — estimado em R$ 2 milhões por mês — ainda não foi autorizado.

A versão do estado é diferente. Em nota, o governo disse que a minuta do convênio foi encaminhada pela Procuradora Geral do Município (PGM) à Secretaria estadual de Assistência Social e Direitos Humanos no dia 26 de setembro. No texto, informam ainda que foi feita uma alteração no prazo final de contrato — até 31 de dezembro — e, no mesmo dia, ocorreu a devolução do documento para o procurador-geral Fernando Dionísio: “Até o presente momento, o convênio continua na PGM, certamente passando por avaliação jurídica”.

SEM DINHEIRO PARA COMER
Enquanto o impasse não é resolvido, pessoas sofrem. Gerlindo de Abreu Contreiras, de 64 anos, recolhe latinhas em troca de R$ 8 por dia. O morador de rua Severino Ramos Filho, de 60, saiu da prisão há sete meses — após 30 anos na cadeia — e, sem ter para onde ir, transformou um carro abandonado atrás da Central em sua casa. A aposentada Iraci Bueno, de 79, vive sozinha em Botafogo e acostumou-se a comer no restaurante popular diariamente, onde diz ter feito amigos. Na porta do restaurante, todos eles se perguntam: e agora?

O colombiano Jorge Armando Cáceres, que veio ao Rio sonhando trabalhar na Olimpíada, mas virou camelô no Centro, já pensa em voltar para seu país.

— Não tenho dinheiro para pagar uma casa e, agora, nem para comer. O problema é que também não tenho condições de comprar uma passagem de volta para a Colômbia — afirma.

Ao seu lado, um rapaz que não diz o nome chega com uma quentinha de aparência pouco atraente.

— Tive que vender um cordão para pagar o almoço — afirma. — Rodei tudo, essa é a mais barata da região, custa R$ 10. O colombiano toma um susto: — Diez reais? Muito caro. Além dos restaurantes, também acabaram os cafés da manhã a R$ 0,50 nas estações de trem de Santíssimo, Japeri, Belford Roxo, Campo Grande e Duque de Caxias, consumidos por mil pessoas diariamente.

— Querem matar os pobres — afirma a desempregada Maria Irene Régis, de 58 anos, moradora de Manguinhos. — Não sei onde vou comer agora. Vou ver se arrumo uma esmolinha aqui na Central.

O aposentado Jamil da Silva, de 83 anos, mora em Santa Teresa, mas descia o bairro diariamente para almoçar no restaurante da Central, que frequenta desde a inauguração, em novembro de 2000, durante a gestão do ex-governador Anthony Garotinho. O restaurante foi o primeiro de 16 unidades espalhadas pelo estado.

— Que aumentassem o valor para R$ 5. A gente pagaria. Mas fechar esse lugar é um crime contra os direitos humanos — diz Jamil, olhos marejados.

Com o agravamento da crise, o cardápio já havia mudado. Se no almoço de estreia há 16 anos foi servido arroz, feijão, bife de panela ou isca de frango, batata palha, salada, sopa de ervilha, refresco de laranja e sorvete de flocos de sobremesa — pelo preço de R$1 —, o menu do último dia de funcionamento, na sexta-feira passada, teve apenas salsicha, arroz, feijão e alface, pelo dobro do valor.

DÍVIDA TOTAL DE R$ 22,3 MILHÕES
A dívida do governo com as dez empresas responsáveis pelos 16 restaurantes populares no estado é de R$ 22,3 milhões. Desse total, diz a Secretaria de Assistência Social, R$ 9,8 milhões são referentes à empresa responsável pelas três unidades que fecharam ontem. No entanto, a HB Multiserviços, que fornece a alimentação nesses lugares, informou que a dívida já está em R$ 18 milhões.

— Agora vamos ver se esse prefeito vai cuidar das pessoas mesmo — afirma o camelô Bernardo Marques, de 48 anos, que ficava olhando para a porta fechada como se não acreditasse. — A verdade é que a gente está como sempre esteve: nas mãos do destino.

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