sábado, 19 de novembro de 2016

Os bastidores do desastre - Eduardo Giannetti

- Valor Econômico

A vida dos povos, não menos que a dos indivíduos, é vivida em larga medida na imaginação. Como observou o filósofo e economista italiano Vilfredo Pareto, "existe um ritmo do sentimento que podemos observar na ética, na religião e na política como ondas que se assemelham ao ciclo de negócios". A alta volatilidade da imaginação brasileira na representação do seu próprio futuro não fica em nada a dever à volatilidade dos nossos indicadores econômicos e financeiros.

Depois de um longo período de maré baixa e descrença, o Brasil viveu na primeira década do novo milênio uma fase ascendente de autoconfiança e otimismo em relação ao próprio futuro. Não faz muito tempo, o gigante adormecido parecia finalmente haver despertado para o seu destino de grandeza e despontava ao olhar externo e perante si mesmo como verdadeira estrela do mundo emergente. Como nos "anos dourados" da era JK no final dos anos 50, tudo parecia conspirar a favor do Brasil.

A economia crescia 4% ao ano em média entre 2003 e 2010; milhões de trabalhadores passaram a ter emprego formal e acesso a mercados dos quais se achavam excluídos; o país surfava a "marolinha" da crise global de 2008-9 sem maiores abalos; conquistara o "grau de investimento" e o direito de sediar a Copa e a Olimpíada e, para coroar, a descoberta do pré-sal - "bilhete premiado" - prometia ser o passaporte da prosperidade sem dor. Vivíamos "um momento mágico na história desse país", como não cansava de repetir o presidente Lula em seus discursos ao término do segundo mandato, sob entusiásticos aplausos. E ai de quem ousasse aventar na época a menor dúvida sobre as bases reais para tanta euforia e autocomplacência!

Depois do porre, a ressaca. Em curto intervalo, o "momento mágico" redundou no seu oposto: o momento trágico. O "espetáculo do crescimento" deu lugar à pior recessão da nossa história, com queda de quase 10% no PIB per capita em apenas três anos; a inclusão social deu marcha a ré e reverteu-se em 12 milhões de desempregados (sem contar os 6 milhões de desocupados que desistiram de buscar emprego) e 60 milhões de pessoas inadimplentes (dívidas em atraso por mais de dois meses); a forte expansão do crédito subsidiado pelo BNDES associou-se à queda do investimento total no país por dez trimestres consecutivos; um governo de perfil estatizante conseguiu arruinar as nossas principais empresas estatais, Petrobras e Eletrobras, e o Plano de Aceleração do Crescimento legou um saldo de mais de 3 mil obras públicas paralisadas somente no âmbito do governo federal. O pileque de ilusão terminou em lágrimas.

• Em curto intervalo, o "momento mágico" redundou no momento trágico. O "espetáculo do crescimento" deu lugar à pior recessão da nossa história

O que deu errado? Em "Anatomia de um Desastre", os jornalistas Claudia Safatle (diretora adjunta de Redação do Valor), João Borges (editor e comentarista de economia da GloboNews) e Ribamar Oliveira (repórter especial do Valor) juntam esforços para contar a história e examinar as causas da radical reversão de desempenho e expectativas que marcou a ascensão e a queda do lulopetismo no poder. Organizado em capítulos temáticos, o livro oferece um relato jornalístico detalhado e fidedigno - ainda que por vezes sinuoso na cronologia dos fatos e na condução do fio narrativo - da espantosa sucessão de equívocos e desmandos que culminaram no pesadelo do qual estamos ainda tentando despertar. Como alerta Armínio Fraga no prefácio da obra, "se o texto que vem a seguir em algum momento lhe parecer ficção, a culpa é dos fatos, não dos autores".

Como os três atos de um drama trágico e farsesco, a política econômica dos governos petistas pode ser periodizada em fases bem definidas: abertura majestosa, interregno e "grand-guignol". É difícil, no entanto, determinar se o desatino e a desonestidade da era petista foram surgindo e se infiltrando aos poucos na construção do desastre, ou se o tenebroso desfecho já estava latente desde a origem no embrião do projeto, não obstante o promissor começo, como a fruta podre dentro da casca.

O início não poderia ser mais auspicioso. A transição para o primeiro mandato de Lula foi conduzida de forma serena e cooperativa, naquele que é talvez o mais belo momento da nossa democracia desde o fim do regime militar. A política econômica da equipe liderada pelo ministro Antonio Palocci não só debelou a crise de confiança gerada pela incerteza pré-eleitoral, graças a um compromisso efetivo com o tripé macro adotado desde o segundo mandato de FHC, como implementou uma bem desenhada agenda de reformas microeconômicas, visando não substituir ou interferir com mão pesada nos diferentes mercados, mas aperfeiçoar o seu funcionamento, reduzir custos de transação e aumentar a segurança jurídica dos contratos.

É digno de registro, contudo, como já nessa fase despontam os primeiros sinais do que viria a ser a tônica do lulopetismo nos atos seguintes. O episódio emblemático, como relatam com riqueza de detalhes Claudia Safatle, João Borges e Ribamar Oliveira, esmiuçando os bastidores e as divisões internas do primeiro governo Lula, teve como protagonista a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, ao desautorizar de forma truculenta, como "rudimentar", a proposta da Fazenda de zerar o déficit nominal do setor público num prazo de cinco a dez anos. "Despesa é vida", sentenciou Dilma, sem suspeitar que a irresponsabilidade e o rudimentarismo fiscal da "contabilidade criativa" e das "pedaladas" sentenciariam a sua morte como futura presidente.

O segundo ato do drama começa com o escândalo do mensalão, que obrigou Lula a ceder nacos do governo e aliar-se ao que há de mais sinistro na política brasileira para sobreviver no poder, e com a queda do ministro Palocci e sua equipe, que preparou o terreno para a sensível piora na qualidade da política econômica no segundo mandato. Os efeitos dessas mudanças, porém, não se fizeram sentir com maior virulência nesse interregno: a credibilidade macro adquirida nos anos iniciais, o aumento do crédito e da produtividade viabilizados pelas reformas microeconômicas e o vento a favor da valorização das commodities permitiram que a economia mantivesse por certo tempo o embalo e conseguisse assimilar, com a ajuda de políticas anticíclicas para as quais havia ainda algum espaço na época, o impacto da crise global.

Com a euforia do "crescimento asiático" de 2010, a vitória de Dilma nas urnas e o clima de "derrocada final do capitalismo" gerado pela crise global - interpretado pela equipe de Mantega como carta-branca para a heterodoxia - estava armado o cenário do espetáculo de barbeiragens e bizarrices, horrores e gambiarras que passou a dominar a cena no terceiro e último ato do drama.

O desastre resultou da combinação de dois vetores: do lado macro, a desmontagem sistemática das três pernas do tripé - austeridade fiscal, inflação no centro da meta e câmbio flutuante - e, do lado micro, a forte recaída dirigista, com o microgerenciamento e a tutela do Estado sobre a atividade econômica, alterando regras, preços, incentivos e contratos ao sabor de pressões e conveniências circunstanciais. A esses dois vetores veio se juntar um fator agravante: a piora do cenário externo e a deterioração dos termos de troca. O comparativo internacional, contudo, é eloquente. Enquanto no acumulado dos anos Dilma o mundo cresceu 18% e os emergentes (fora o Brasil) 28%, o Brasil cresceu 5,3%. "É só quando a maré baixa", como alerta Warren Buffett, "que nós descobrimos quem estava nadando nu".

• A reversão de expectativas da era petista tem parentesco com o "post festum" da era JK e a "década perdida" "pós-milagre" do regime militar

O mérito de "Anatomia de um Desastre" é a reconstrução detalhada do contexto e dos debates internos que marcaram as principais escolhas de política econômica e social nos 13 anos, quatro meses e 12 dias de governo petista. Amparado em amplo e acurado trabalho de investigação e entrevistas, não raro com fontes diretamente envolvidas, mas que preferiram se manter anônimas, a narrativa franqueia o acesso aos bastidores do processo decisório e não se exime de pôr os pingos nos is e dar nome aos bois: quem disse o quê e quando; quais eram as propostas e posições defendidas; quem deu a última palavra. Exemplos notáveis são os capítulos "Fábrica de Dividendos" e "Muito Além das Pedaladas", em que os autores destrincham a pletora de artimanhas e truques contábeis por meio das quais o governo Dilma - Arno Augustin à frente - se dedicou à pajelança do ilusionismo fiscal. Fosse mera ficção, soaria inverossímil.

Por outro lado, creio que o livro poderia ter se beneficiado de um cuidado maior com a construção de um fio narrativo que evitasse as inúmeras idas e vindas do texto a pontos e estatísticas já tratados, por exemplo em temas como desonerações e política monetária. Talvez por resultar em boa medida da reunião de artigos jornalísticos escritos no calor da hora e agora revisados para publicação, o conjunto da obra padece de certo artificialismo e falta de unidade. É de se lamentar também a falta de um índice de nomes e assuntos, imprescindível em um livro como esse, e que seguramente valorizaria o trabalho como instrumento e fonte de pesquisa.

A brutal reversão de expectativas vivida pelo Brasil durante a era petista guarda parentesco com episódios análogos em nossa história recente: o amargo "post festum" da era JK e a "década perdida" após o fim do "milagre" do regime militar. O que há em comum nos três casos é a tentativa de forçar a marcha do crescimento a qualquer preço por meio de atalhos e expedientes - imposto inflacionário, poupança externa e endividamento público, respectivamente - que permitissem contornar a restrição imposta pela nossa baixa poupança doméstica. E o resultado, nos três casos, foi o mesmo: espasmos eufóricos, porém efêmeros, de crescimento seguidos por anos de paralisia e prostração.

Contas públicas equilibradas, inflação na meta e contas externas ajustadas deveriam ser tidos e tratados não como opções ideológicas, direita versus esquerda, mas como valores suprapartidários e patrimônio de todos os brasileiros. Teremos afinal aprendido a dura lição? Ou estamos condenados ao que Mário Henrique Simonsen chamou, em outro contexto, de nossa irrefreável vocação para o princípio da contraindução, segundo o qual "uma experiência que dá errado inúmeras vezes deve ser repetida até que dê certo"?

"Anatomia de um Desastre"
De Claudia Safatle, João Borges e Ribamar Oliveira (Porfolio-Penguin, 328 págs., R$ 44,90)
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Eduardo Giannetti, economista, cientista social e autor, entre outros livros, de "Trópicos Utópicos" (Companhia das Letras, 2016)

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