sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Nascemos com sorte - Luiz Roberto Nascimento Silva

- O Globo

• Observar um grande médico trabalhando num hospital é um momento inesquecível e emocionante

O mês de dezembro trouxe dias de chuva alternados com manhãs de céu azul, límpido, com lindas nuvens dispersas com elegância. De onde resido, na Lagoa, tenho o privilégio de assistir à beleza do Rio de Janeiro nesses dias que me dão a certeza de viver numa cidade mágica, mesmo sendo o purgatório da beleza e do caos.

Num desses, fui surpreendido pela notícia do falecimento de John Glenn, o primeiro astronauta americano a orbitar a Terra e herói nacional. Lembrava-me vagamente dessa epopeia no agora remoto ano de 1962, quando ainda era criança. Não sabia, entretanto, que ele tinha sido um extraordinário piloto de guerra antes de ingressar na Nasa e que tinha recebido todos os maiores prêmios e condecorações americanas por sua bravura. Participou de 59 missões durante a Segunda Guerra e de outras 90 na Guerra da Coreia. Seu avião foi atingido por inimigos em cinco ocasiões diferentes e, num desses episódios, retornou à base com 375 furos em sua aeronave. Após o término de sua carreira como piloto, depois de duas tentativas, elegeu-se senador pelo Partido Democrata, tendo permanecido no Senado até sua aposentadoria. Não sabia nada dessa trajetória.

Pois bem, esse homem que correu gigantescos riscos durante a vida faleceu placidamente aos 95 anos de idade em Ohio, e seu corpo foi enviado ao Cemitério Nacional de Arlington, na Virgínia, onde descansam os heróis americanos.

O leitor deve estar se perguntando porque essa notícia me chamou a atenção de forma intensa. Talvez porque esse homem tenha vivido o melhor de sua existência nesse céu imenso que estava observando há poucos minutos. Talvez porque sua biografia seja tão distinta da minha, bicho urbano, frequentemente de terno e gravata, andando por cidades de concreto. Essa imensa distância do que sou e do meu universo é que me intriga e fascina nessa manhã.

Minha mulher, Eleonora, sempre me contou uma história curiosa do Joaquim Pedro de Andrade, brilhante e saudoso cineasta mineiro que ela conheceu muito bem. O Joaquim insistia em que as pessoas que faziam algo com excelência deviam ser observadas. Nessa ocasião, estava encantado com um mergulhador que penetrava nas profundezas do oceano apenas com o ar de seus pulmões. Admirava como ele fazia isso bem.

Temos a tendência de nos fixarmos em pessoas que tenham atividades, interesses e trajetórias semelhantes à nossa. Além disso, vivemos numa sociedade de espetáculo, que valoriza e consome celebridades em detrimento de outras atividades. Negligenciamos com frequência profissões, habilidades e ofícios que não conhecemos. Os médicos, por exemplo, me fascinam. Julgo que exercem a mais nobre atividade humana. Nós, advogados, somos necessários e fundamentais, mas nossa atuação quase sempre tem consequências materiais para nossos clientes, ainda que delas surjam sequelas humanas. Os médicos, não. Sua matéria-prima é a própria vida. Eles lidam com ela em toda a sua extensão, desde o milagre do nascimento até o final inexorável da existência humana. Observar um grande médico trabalhando num hospital é um momento inesquecível e emocionante.

O piloto-astronauta que vivia nos céus ou o mergulhador do oceano são fascinantes por exercerem seus ofícios com excelência. Se todos pudessem se esforçar por exercer sua profissão ou trabalho da melhor forma possível, já teremos um grande avanço.

Olho novamente o céu, agora sem nuvens. Recordo-me de uma passagem do célebre “O velho e o mar”, de Hemingway, na qual o pescador Santiago, que também exercia seu ofício com excelência, durante sua longa batalha contra o grande peixe, pensa e conclui: “Mas imagine só se um homem tivesse de matar o Sol. Nascemos com sorte”. Sim, nascemos com sorte.

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Luiz Roberto Nascimento Silva é advogado e foi ministro da Cultura governo Itamar Franco

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