domingo, 4 de dezembro de 2016

Opinião do dia – Fernando Henrique Cardoso

Alguns setores políticos estão entrando em pane. Por quê? É que nunca se discutiu a sério, no Brasil, quem paga o custo da democracia. Tínhamos antes um sistema de corrupção mais pessoal, que agora está institucionalizado. Como chegamos a isso? Começou com a Constituição garantindo o financiamento dos partidos pelo governo via Fundo Partidário, com TV gratuita, os partidos registrando a doação. E as empresas começaram a doar para vários partidos, o limite foi ficando muito elevado, entraram bancos e empreiteiras… Hoje o cenário é outro. O dinheiro sai do Tesouro. Faz-se um contrato, aumenta-se o valor da obra e boa parte dele é repassado diretamente ao partido. Resultou num grande aumento no volume da corrupção. Daí surgiram o mensalão, depois o petrolão…
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Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República, O Estado de S. Paulo, 3/12/2016

A crise atravessa o samba

• Queda em patrocínios muda o perfil do carnaval na Sapucaí e nos blocos de rua

Glauce Cavalcanti, Bruno Rosa - O Globo

Atravessou. A crise econômica chegou ao carnaval. A pouco menos de três meses da festa mais popular do país, a falta de patrocínio está dando nova cara aos dias dedicados aos festejos de Momo no Rio. Na Marquês de Sapucaí, acabaram os espaços VIPs bancados por grandes cervejarias. E cresceram os organizados por empresas de eventos, com ingressos vendidos por até R$ 5.200. Nas ruas do Rio, os blocos, até agora, contam com só um patrocinador, contra os três do carnaval 2016, diz a Prefeitura. Nos bastidores, a explicação é dupla: a crise tornou a captação de recursos públicos e privados mais difícil, e a Olimpíada polarizou os aportes em marketing das corporações.

Para botar o samba na Avenida e os blocos nas ruas em tempos de recessão, é preciso caprichar no rebolado financeiro em busca de recursos.

— Estamos há cinco anos sem aumentar o preço dos ingressos para o Sambódromo, apesar da inflação. Fizemos o mesmo com os valores cobrados pelos espaços dos camarotes e pelas cotas de patrocínio. Só as frisas da fila A têm reajuste — explica Jorge Castanheira, presidente da Liga Independente das Escolas de Samba do Grupo Especial do Rio (Liesa). — Apostamos em atrair parceiros com cotas menores, buscando empresas. Já temos Bradesco, Elo, Guanabara e RedBull de patrocinadores. A Rio 2016, diz ele, pesou nesse cenário: — As companhias direcionaram os recursos de marketing e patrocínio para a Olimpíada. Mas os Jogos foram importantes para o Rio, temos de aproveitar a divulgação. O carnaval de 2017 será de beleza e criatividade, para compensar a perda em recursos. Nos camarotes, há mais opções e dias a serem vendidos.

Desânimo nas redes e nos bares

• Falta de dinheiro, desemprego e aumento da insegurança tomam conta dos debates no pós-Olimpíada. Crise política e econômica se junta a fim de ano de pouca comemoração

Ludmilla de Lima - O Globo

A Lagoa Rodrigo de Freitas não se enfeitará com as luzes de Natal. Neste fim de ano, a cidade não terá a simbólica árvore, enquanto o Réveillon será, digamos, mais minimalista: Copacabana, que já teve três palcos de shows para a alegria da multidão, contará desta vez com apenas um. Uma atmosfera de desânimo paira sobre o Rio de Janeiro que, ironicamente, há quatro meses, vivia o embalo da Olimpíada. Partiram as delegações, e o astral dos cariocas entrou em queda junto com a economia do estado. Esse clima se reflete nas redes sociais, onde dinheiro curto, desemprego, descrença na política e aumento da insegurança dominam os debates, que não raro acabam até com amizades.

“Pensando bem, este ano de 2016 pode ter sido um capítulo de Black Mirror", escreveu no Facebook outro dia Zeca Borges, criador do Disque Denúncia, serviço que vem sendo ameaçado pela crise. No post, ele brinca e faz metáfora com o sentimento de muitos, usando a perturbadora série britânica que trata da relação do homem com a tecnologia, às vezes, de forma sombria e assustadora.

— Não sabemos mais como acordaremos no dia seguinte, com que tipo de notícia vamos nos levantar da cama. A crise estava prevista, mas ninguém sabia que seria essa desesperança. E você ainda vê nas redes e nas ruas do Rio uma intolerância marcante, uma falta de paciência, de empatia com os outros — diz Zeca, que tem escutado gente falando que quer ir embora não só do Rio, como do Brasil. — As coisas que os cariocas gostam parecem ter ficado sem graça. O Arpoador ficou sem graça... Temos que voltar a gostar de passear em Copacabana, andar no calçadão... E, se o humor acaba, a coisa fica muito grave.

O cantor e compositor Martinho da Vila diz que a euforia da Olimpíada passou, e o carioca baixou a bola. Até o espírito natalino sofre o baque.

Consumo só se recupera em 202o

A queda no consumo das famílias brasileiras foi tão intensa que só em 2020 esses gastos voltarão ao patamar de 2014, quando bateram o recorde de R$ 3,989 trilhões.

Impacto da recessão no consumo será mais longo

• Economia deve iniciar recuperação em 2017, mas brasileiro só recuperará padrão de compras daqui a 4 anos

Ana Paula Ribeiro - O Globo

-SÃO PAULO- Depois de dois anos de queda do Produto Interno Bruto (PIB), em meio à maior recessão da história recente do país, a atividade econômica no país só deve começar a mostrar alguma recuperação a partir do ano que vem. Mas o resgate do padrão de consumo que o brasileiro tinha em 2014 será mais lento e desigual entre as diferentes categorias de bens e serviços e deve ocorrer somente a partir de 2020, de acordo com as projeções de economistas.

— É um ciclo econômico natural e um processo longo de recuperação até que se reverta em ampliação do consumo. O consumo das famílias só volta ao patamar pré-crise em 2020, mas com mais certeza em 2021 — avaliou Rafael Bacciotti, economista da Tendências Consultoria.

Metade das empresas não tem caixa para pagar bancos, aponta estudo

Eulina Oliveira – Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - A prolongada crise econômica que o país atravessa está minando os esforços feitos pelas empresas para reduzir seu endividamento, o que tem contribuído para adiar investimentos e a recuperação da atividade econômica.

Uma análise dos balanços apresentados por 256 empresas com resultados no terceiro trimestre mostra que elas conseguiram algum alívio nos últimos meses com a valorização do real em relação ao dólar, mas continuam operando com níveis elevados de endividamento e têm dificuldades para retomar o fôlego.

De acordo com o estudo, elaborado pelo Cemec (Centro de Estudos do Instituto Ibmec), 48,7% das empresas não conseguiram gerar caixa suficiente para cobrir suas despesas financeiras no período. No trimestre anterior, 51,7% estavam nessa situação.

Estados adotaram contabilidade criativa, diz economista

Laís Alegretti – Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - Diretor-executivo da recém-criada Instituição Fiscal Independente (IFI), o economista Felipe Salto considera que o governo do presidente Michel Temer "começou bem" na área fiscal, mas aponta que é preciso fazer mais.

Mesmo com críticas à PEC do Teto (que visa limitar os gastos públicos), Salto diz que aprová-la "é melhor que não aprovar".

Com trajetória ligada ao PSDB, ele afirma, na primeira entrevista após ser nomeado para comandar a IFI, que o órgão, ligado ao Senado, terá independência e isenção.

Para FHC, ‘sistema político-partidário acabou’

Sonia Racy – O Estado de S. Paulo

Com seu olhar experiente, FHC acompanha os recentes episódios políticos e conclui: “O sistema partidário brasileiro acabou. Como não temos outro à mão, ele vai ficando…” Da constatação, o ex-presidente passa a um conselho: “Em momentos difíceis, cabe às lideranças mostrar caminho e dar esperança. Porque, no dia a dia, é só desemprego.”

Mas, nesta conversa com SR e Gabriel Manzano, ele não atira a toalha: “Os fundamentos da economia estão sendo postos. Não tenho visão pessimista”.

• Como avalia os episódios da semana , especialmente a questão do caixa 2 no Congresso?

Alguns setores políticos estão entrando em pane. Por quê? É que nunca se discutiu a sério, no Brasil, quem paga o custo da democracia. Tínhamos antes um sistema de corrupção mais pessoal, que agora está institucionalizado. Como chegamos a isso? Começou com a Constituição garantindo o financiamento dos partidos pelo governo via Fundo Partidário, com TV gratuita, os partidos registrando a doação. E as empresas começaram a doar para vários partidos, o limite foi ficando muito elevado, entraram bancos e empreiteiras… Hoje o cenário é outro. O dinheiro sai do Tesouro. Faz-se um contrato, aumenta-se o valor da obra e boa parte dele é repassado diretamente ao partido. Resultou num grande aumento no volume da corrupção. Daí surgiram o mensalão, depois o petrolão…

• Como combater essas falhas?

É tarefa da Justiça. Ela tem de separar as coisas. Quem deu, por onde, quem recebeu, como usou. Julgar o ilícito que se fez, quem fez.

• Por que se chegou a esse ponto?

O fato é que nosso sistema político partidário acabou. Como não tem outro aí, ele vai ficando. Mas não tem representatividade, não deixa governar, não funciona mais. Basta somar PMDB, PT e PSDB. Não chegam juntos a 200 deputados, em 513. Mas não sou pessimista. A equipe econômica tem um projeto, temos agricultura, commodities, a Petrobrás está sendo posta em ordem, Eletrobrás e bancos têm pessoas competentes.

• O que falta?

O arcabouço político. E que o público perceba por onde estamos indo. Se você não dá esperança, só sobra o dia a dia, que é desemprego. E, no mundo de hoje, tem de explicar aos cidadãos, no miúdo, ou eles não vão juntos. Não basta ter razão, ou competência, tem de convencer as pessoas de qual é o caminho. Eu fazia isso no tempo do Itamar. Nem precisa ser o presidente, mas algum ministro tem de fazer isso.

‘Espírito cruzadista pode afetar eficácia do MP’, diz historiador

• Historiador vê exageros de procuradores da Lava Jato; para ele, o ‘próprio mandato do presidente pode estar em perigo’

Wilson Tosta - O Estado de S. Paulo

Um 2017 com nuvens carregadas pelo aprofundamento das crises econômica e política se aproxima do Brasil e poderá inviabilizar o governo do presidente Michel Temer, afirma o historiador José Murilo de Carvalho, de 77 anos. “O próprio mandato do presidente pode estar em perigo”, afirma. Em entrevista ao Estado, ele reconhece as dificuldades herdadas pelo ex-vice da gestão Dilma Rousseff e admite que a situação de Temer está se deteriorando.

O pesquisador critica os procuradores da Operação Lava Jato, que, diz, prestam um serviço à República, mas adotam um “espírito cruzadista” e cometem “exageros”. Mas também ataca a Câmara dos Deputados – responsável, segundo ele, por uma “manobra vergonhosa” para desfigurar o pacote anticorrupção.

Para ele, o cenário atual, marcado por conflitos, é muito diferente ao posterior ao impeachment de Fernando Collor, em 1992. “Não há hoje Itamares disponíveis”, desanima-se Carvalho. Ele vê possível erro do governo ao implementar medidas com foco exclusivamente fiscal, que não garantem que os mais pobres não paguem sozinhos as contas do ajuste das contas públicas.

O historiador aponta, no governo de Campos Sales (1898-1902), um tempo que, em sua opinião, é comparável ao que se vive hoje no Brasil. Outra comparação é mais recente, com a crise argentina de 1999 a 2003, que culminou com a queda de Fernando de la Rúa e no slogan: “Que se vayan todos”. Carvalho adverte: crises profundas são terreno fértil para acúmulo de poder, à direita e à esquerda.

A seguir, os principais trechos de sua entrevista ao Estado.

Planalto teme que protestos virem onda contra governo

Governo teme nova ‘onda’ de manifestações no País

• Grupos que lideraram atos pró-impeachment convocam para hoje protestos e Planalto receia virar alvo; avaliação é de que Congresso ajudou a aumentar tensão política

Vera Rosa e Tânia Monteiro - O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - As manifestações de rua previstas para hoje, em todo o País, preocupam o Palácio do Planalto. O receio é de que os protestos sirvam para puxar uma perigosa onda de mobilização pela saída do presidente Michel Temer, como aconteceu com Dilma Rousseff, deposta em agosto por um processo de impeachment. Na avaliação do governo, o Congresso contribuiu, nos últimos dias, para aumentar a tensão política, ao aprovar um pacote que desfigurou as medidas contra a corrupção.

Sem conseguir reduzir sua impopularidade e sofrendo um revés atrás do outro na economia, Temer procura escapar de eventos em locais abertos desde que assumiu o cargo, há seis meses, mas ontem, após ser criticado, compareceu ao velório de jogadores da Chapecoense e jornalistas na Arena Condá, em Santa Catarina. A “voz das ruas” também foi a justificativa usada pelo presidente, há uma semana, ao anunciar que jamais sancionaria uma proposta de anistia a caixa 2, caso a iniciativa fosse aprovada pela Câmara. Foi surpreendido, porém, com críticas de tucanos, para quem a fala expôs a fragilidade do governo.

O algoritmo da política mudou - Fernando Henrique Cardoso

- O Estado de S. Paulo

• As propostas para o futuro devem olhar as necessidades concretas das pessoas

A eleição de Donald Trump confirma o que já se pressentia. Na França, mesmo sem vencer, é provável que Marine Le Pen aumente sua votação. Será o temível “direita volver”? Sim e não.

É indiscutível que a onda contemporânea é de rechaço aos “males da globalização”. Os que simbolicamente representam a “globalização feliz”, na expressão do sociólogo Pascal Perrineau, estão colhendo o repúdio dos deserdados dela. Mas isso é só parte da história. Ao mesmo tempo a sociedade está refazendo liames de solidariedade e definindo formas de comportamento orientadas por valores que se afastam do padrão anterior. As razões desse sacolejar não podem ser reduzidas às consequências, negativas para alguns, da integração global dos mercados, da alta produtividade das novas tecnologias e do consequente drama do desemprego.

Em meio à tempestade - Luiz Werneck Vianna

O Estado de S. Paulo

• Inútil ficar com o olhar perdido em 2018. A hora da grande política é agora

Deu a louca no mundo e a roda do destino parece estar girando para trás. De um horizonte cosmopolita, que ainda ontem se podia divisar, estamos sendo devolvidos, por poderosos golpes inesperados, como o do Brexit dos ingleses e desse que nos atinge o queixo em cheio com a eleição de Donald Trump, ao espaço anacrônico do Estado-nação hobbesiano. A política ameaça regredir às trevas dos anos 1930, tendendo a convertê-la, como naquela década sombria, a instrumento exasperador da competição econômica por mercados que nos levou à hecatombe da 2.ª Guerra Mundial. Entre tantos sinais nefastos que se prenunciam – plausível uma vitória eleitoral da extrema direita na França –, estão aí as investidas contra a União Europeia e a ONU, visando a rebaixar seu papel civilizatório e recusar suas promessas em favor da concórdia e de paz entre os povos.

Os riscos a que estamos expostos não resultam, obviamente, de causas naturais, mas da imprevidência humana, que, mesmo advertida pelo lento derruimento de nossas instituições da democracia política a que inermes temos assistido, principalmente pelo esvaziamento dos partidos e da vida associativa, não foi capaz de reagir ao que havia de legítimo nas queixas e no sentimento de descrença do homem comum quanto a elas.

A lei segundo os bandidos - Fernando Gabeira

- O Globo

Há sempre um momento para travar a batalha decisiva. O Brasil está diante dele. Durante o luto nacional, quando ainda se chorava a morte das vítimas do acidente com o avião da Chapecoense, os investigados decidiram criar uma lei para controlar juízes e procuradores. Seria o único país do mundo a tolerar essa afronta. No meio da semana, a equipe da Lava-Jato ameaçou renunciar se a lei da intimidação for sancionada. Mas é hora de resistir. Mais cedo ou mais tarde, viria a mãe de todas as batalhas. As tardes de domingo talvez não sejam mais as mesmas. Será preciso gritar e muito. Mas a resistência aos bondes de investigados, que redigem leis e defendem a corrupção, não deve se limitar apenas à presença nas ruas.

A Justiça brasileira foi atingida em cheio. Ela pode, simplesmente, declarar inconstitucional a lei da intimidação, porque os deputados legislaram em causa própria pois são investigados. Isso também não basta. Enquanto não se julgarem os processos de todos os políticos no Supremo, vão tentar criar leis que lhes dê a blindagem necessária para sobreviver. Também para eles é uma questão de vida e morte.

Solidariedade – Ferreira Gullar

- Folha de S. Paulo


  • Para que alguém necessita ter a sua disposição milhões de dólares?


Frequentemente me pergunto por que certas pessoas indiscutivelmente inteligentes insistem em manter atitudes políticas indefensáveis, já que, na realidade, não existem mais.

Estou evidentemente me referindo aos que adotaram a ideologia marxista, que, de uma maneira ou de outra, militaram em partidos de esquerda, fosse no Partido Comunista, fosse em organizações surgidas por inspiração da Revolução Cubana.

Não tenho dúvida alguma em afirmar que Karl Marx foi uma personalidade excepcional, tanto por sua inteligência como por sua generosidade, pois dedicou a sua vida à luta por um mundo menos injusto.

Graças a homens como ele, as relações de capital e trabalho –que, na época, eram simplesmente selvagens– mudaram, alcançado as conquistas que as caracterizam hoje. Marx contribuiu para mudar a sociedade humana, muito embora o seu sonho da sociedade proletária se tenha frustrado.

Apoio à Lava-Jato - Merval Pereira

- O Globo

Prefiro sempre não acreditar em teorias conspiratórias, mas a manobra dos deputados na noite de quarta-feira na Câmara, distorcendo o sentido original das medidas contra a corrupção para transformá-las em perseguição a juízes e procuradores do Ministério Público, e a afoiteza com que o senador Renan Calheiros tentou aprovar as medidas, menos de 24 horas depois que elas saíram da Câmara, bem que poderiam ter sido parte de um plano bem engendrado por agentes infiltrados para criar um clima popular contra os parlamentares.

Justamente às vésperas das manifestações marcadas para hoje em todo o país a favor da Lava-Jato, que já incorporavam protestos contra uma tentativa de anistia do caixa 2 — que acabou sendo abortada pela reação da opinião pública — e passaram a ser contra também tal distorção do combate à corrupção.

Não poderia haver momento mais apropriado para exacerbar a opinião pública, que já não aceita esse tipo de ação política escamoteada por “emendas da meia-noite”, na boa definição do juiz Sérgio Moro.

Encalacrada - Eliane Cantanhêde,

- O Estado de S. Paulo

• Política e economia vão mal e exigem solavancos que Temer não pode dar

O presidente Michel Temer tem conseguido aprovar medidas importantes no Congresso e já ensaia o envio da reforma da Previdência, mas a crise política castiga os ânimos, enquanto a alta expectativa de recuperação da economia não está se confirmando. Quanto mais alto o voo (ou a expectativa), maior o tombo (ou a frustração). E uma frustração nessa área sensível é o pior dos mundos para Temer, que já farejou o perigo e tenta acionar quadros tucanos para equilibrar-se na “pinguela” a que se refere Fernando Henrique Cardoso.

Armínio Fraga na Fazenda, Pedro Parente no Planejamento e Antônio Imbassahy na Secretaria de Governo seriam um sonho, mas isso é inviável neste momento. Armínio não quer, Parente é decisivo na Petrobrás (uma das poucas áreas a dar boas notícias a Temer e à opinião pública) e consta que o PSDB acaba de rejeitar a coordenação política, fosse Imbassahy ou não.

O Brasil como interrogação - Luiz Carlos Azedo

- Correio Braziliense

• O modelo nacional desenvolvimentista não deu conta do recado, seja com a direita ou com a esquerda no poder

Obra do modernista Cassiano Ricardo, ‘Martim Cererê’, da Editorial Record, é um longo poema indigenista e nacionalista, no qual o índio, o negro e o branco tomam posse e inventam um novo país. Publicado pela primeira vez em 1928, integra a trilogia de textos antropológicos do modernismo, com ‘Manifesto Antropófago’, de Oswald de Andrade, e ‘Macunaíma’, de Mário de Andrade. Retrata as origens do Brasil desde seus primórdios, passando pelo processo de interiorização do território e seu desenvolvimento, com criaturas fantásticas, gigantes, lendas brasileiras. Nossa rica mitologia é utilizada na poesia de Cassiano, um precursor, digamos, de nossa “hibridização” cultural.

Santa democracia - Hélio Schwartsman

- Folha de S. Paulo

"Contra a Democracia". O título do livro do filósofo americano Jason Brennan pode ser bom para as vendas, mas não ajuda muito na hora de fazer-se compreender. Ao longo do último par de décadas, desenvolvemos uma reverência quase religiosa para com a democracia, e tudo o que pareça ir contra ela se torna motivo de opróbrio.

Imagino que, por causa do título, parte dos leitores já abra o livro com um pé atrás. Mas Brennan, embora faça severas críticas a democracia, não chega a ser contrário a ela.

O filósofo recorre à literatura que investigou empiricamente como o eleitor define seu voto e tenta mostrar que deveríamos ter medo de entregar decisões importantes e que valem para todos os cidadãos a uma turba tão despreparada.

O abuso das autoridades - Dora Kramer

- O Estado de S. Paulo

• Congressistas abusaram e se lambuzaram na agressão à paciência dos cidadãos

Diante da inversão de valores perpetrada pela Câmara na retaliação da proposta das medidas de combate à corrupção e da tentativa do réu que preside o Senado de votá-la de afogadilho na Casa revisora, é de se perguntar qual é a parte do repúdio social a manobras espúrias que Suas Excelências ainda não entenderam.

Hoje estão marcados protestos cuja motivação mais forte reside nas recentes atitudes do Congresso. A pauta é dispersa, embora o recado da sociedade seja claro: “Não me enganem, porque definitiva e claramente eu não gosto”. Retrato disso foi o contraste entre a animosidade latente contra o juiz Sérgio Moro na Mesa Diretora e a calorosa recepção dada a ele por parte de funcionários do Senado quando do debate, no plenário, sobre a Lei de Abuso de Autoridade.

Marketing do arrependimento - Bernardo Mello Franco

- Folha de S. Paulo

"Desculpe, a Odebrecht errou". Assim começa o anúncio de duas páginas que a maior empreiteira do país publicou nos jornais de sexta-feira (2). Na propaganda, a empresa "reconhece que participou de práticas impróprias".

"Não importa se cedemos a pressões externas", prossegue o texto, insinuando que os empresários corruptores foram forçados a financiar os políticos corruptos. "Foi um grande erro, uma violação dos nossos próprios princípios, uma agressão a valores consagrados de honestidade e ética", continua o comunicado.

O discurso pode sugerir arrependimento, mas é apenas marketing. Há um ano e meio, a mesma empresa manifestava "indignação com as ordens de prisão de cinco de seus executivos". "A Odebrecht nega ter participado de qualquer cartel", dizia a peça publicitária de junho de 2015.

O país do avesso - José de Souza Martins

- O Estado de S. Paulo /Aliás

• Não caiu a ficha do governo que, enquanto impõe medidas draconianas ao povo, os políticos não renunciaram a seus descabidos privilégios, diz sociólogo

Tentando compreender acontecimentos destes dias, vieram-me à lembrança expressões vulgares, que eu imaginava ultrapassadas, mas que parecem ter grande sentido popular nesta hora. Uma delas, muito usada há meio século, é “eles não se mancam” ou “eles não tem desconfiômetro”. Tudo para dizer que “eles”, quem quer que sejam, não percebem que o que estão fazendo é impróprio e descabido, descabimento que já chegou à consciência da maioria. Nos dias de hoje, eles não percebem que são bem menores do que pensam ser. Uma outra expressão antiga é a de que “pr’aquele ali, não caiu a ficha”. Alusão ao uso de fichas em telefones públicos. Quer dizer que a pessoa fala ao telefone sem perceber que a ligação não foi completada, pois a ficha inserida no dispositivo próprio não caiu no recipiente de fichas para acionar o telefone. Fala, portanto, para ninguém. Ou fala sozinha. São expressões que dizem respeito à desconexão entre quem fala e quem deveria ouvir, entre quem age e o suposto destinatário da ação. Uma situação de descontinuidade e desencontro, ou desrespeito, própria de pessoas que supostamente estão no mesmo mundo mas que vivem em mundos diferentes, os de lá não se consideram daqui.

O custo e o benefício - Míriam Leitão

- O Globo

Você acredita na sinceridade do arrependimento da Odebrecht? Muita gente está com essa dúvida. A minha resposta a quem me fez essa pergunta foi que o arrependimento dos pecados está no campo da religião. Aqui se trata de uma mudança de estratégia corporativa baseada na análise de custo/benefício. A Lava-Jato elevou exponencialmente o custo da corrupção e tornou inútil continuar negando as evidências.

Existe a lei e a capacidade de uma sociedade de impor a todos o seu cumprimento, o “enforcement”. É essa força que está em alta no Brasil com as operações de investigação em curso. A Odebrecht e outras empresas fizeram um movimento de sobrevivência. Houve, evidentemente, uma luta. A empresa negou, soltou notas indignadas, fez críticas às investigações, ameaçou, confrontou procuradores e juízes. Por fim, perdeu. Mudou de estratégia e iniciou uma longa negociação até chegar ao ponto em que está, de reconhecimento dos crimes, pagamento de multa e redução dos danos e penas. A promessa é reconstruir as normas internas e fazer negócios com outra lógica.

Fritar ministro, jogo perigoso – Editorial / O Estado de S. Paulo

O presidente Michel Temer precisa reafirmar com clareza, em benefício do País e do governo, sua prerrogativa exclusiva de nomear e demitir ministros. Há uma evidente manobra para enfraquecer o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, e substituir seu programa de ajuste por uma política de crescimento imediato. Se admitir essa tentativa de fritura, o chefe de governo cometerá mais um erro sério e comprometerá sua autoridade. Nesse caso, porá igualmente em risco as metas mais importantes de sua administração. O custo maior desse fracasso será pago pelos cidadãos.

Tentativas de enfraquecer o ministro da Fazenda já haviam ocorrido, com envolvimento de aliados e de pessoas próximas do presidente. A nova manobra converteu-se em noticiário de grandes jornais logo depois da publicação do balanço econômico do terceiro trimestre. O prolongamento da recessão por sete trimestres consecutivos é apenas uma parte do quadro. O cenário mais detalhado inclui o desemprego de 12 milhões de pessoas, assim como o desalento de trabalhadores sem disposição, neste momento, de sair em busca de uma vaga. Além disso, as primeiras informações a respeito da atividade econômica em outubro, início do quarto trimestre, confirmam um fim de ano com o País ainda encalhado.

O ajuste em curso nas empresas estatais – Editorial/O Globo

• Sem ajuda do Tesouro, devido à crise fiscal, companhias públicas cortam gastos e vendem ativos, mas a volta do populismo a Brasília é sempre uma ameaça

As atenções se concentram nos embates políticos em torno dos imprescindíveis ajustes nas contas públicas, sem os quais a economia não voltará a crescer em um ritmo mínimo para repor os milhões de empregos pulverizados pela recessão ainda em curso e criar um volume de vagas necessárias à absorção dos jovens que entram a cada ano no mercado de trabalho.

São enormes as dificuldades de superação dos obstáculos criados ao ajuste por grupos organizados de pressão, corporações sindicais e similares, cevados durante tanto tempo de gastança desenfreada. Talvez, infelizmente, a crise tenha de se aprofundar para quebrar resistências.

Enquanto isso, no segmento de empresas estatais transcorre já há algum tempo o corte de despesas, inclusive de pessoal. Não há mesmo alternativa, porque com o Tesouro na rota da insolvência — a dívida pública está na faixa de 70% do PIB e só parará de crescer com os ajustes — inexiste a possibilidade de capitalização dessas companhias pelo seu maior acionista, a União.

Minha medida - Ferreira Gullar

Meu espaço é o dia
de braços abertos
tocando a fímbria de uma e outra noite
o dia
que gira
colado ao planeta
e que sustenta numa das mãos a aurora
e na outra
um crepúsculo de Buenos Aires
Meu espaço, cara,
é o dia terrestre
quer o conduzam os pássaros do mar
ou os comboios da Estrada de Ferro Central do Brasil
o dia
medido mais pelo pulso
do que
pelo meu relógio de pulso
Meu espaço — desmedido —
é o nosso pessoal aí, é nossa
gente,
de braços abertos tocando a fímbria
de uma e outra fome,
o povo, cara,
que numa das mãos sustenta a festa
e na outra
uma bomba de tempo