sexta-feira, 31 de março de 2017

Golpe disfarçado na Venezuela

Provocou reação dentro e fora da Venezuela a decisão do Supremo de tirar poderes da Assembleia Nacional. O Brasil condenou a ruptura da ordem constitucional.

Todo o poder ao chavismo

Sentença do TSJ que anula papel do Legislativo é denunciada como instauração da ditadura

Janaína Figueiredo | O Globo

-BUENOS AIRES- A sentença do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) da Venezuela, que na madrugada de ontem determinou que sua Sala Constitucional é quem exerce “competências parlamentárias” no país — dado o que considera uma situação de desacato da Assembleia Nacional (AN) — provocou forte reação entre juristas, dirigentes políticos de oposição, membros de ONGs e organismos internacionais. Para todos, houve uma ruptura da ordem constitucional e um golpe ao Poder Legislativo. A palavra “golpe” instalou-se dentro e fora da Venezuela e levou o secretário geral da Organização de Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, a convocar uma reunião de emergência do Conselho Permanente da entidade para discutir a crise e sua proposta de aplicar a Carta Democrática.

Almagro voltou a defender, enfaticamente, o uso da Carta para exigir ao governo do presidente Nicolás Maduro a realização de eleições no curto prazo:

— (A Carta) Deveria ter sido acionada com rigor para não lamentarmos outro golpe de Estado no hemisfério.

DESACATO COMO DESCULPA
Dois dias depois de ter publicado outra sentença, dando poderes ilimitados ao chefe de Estado e retirando a imunidade dos congressistas do país — que poderão agora ser julgados por tribunais militares — o TSJ utilizou uma decisão sobre a interpretação da Lei Orgânica de Hidrocarbonetos para anular, total e oficialmente, a AN, controlada pela oposição. O objetivo da sentença era autorizar o Executivo a criar empresas mistas no setor, sem necessidade, como indica a Constituição, de autorização do Parlamento.

Explicada a parte central da resolução, o TSJ aproveitou para avançar sobre o Legislativo: “Finalmente, se adverte que enquanto persistir a situação de desacato e de invalidez das atuações da AN, esta Sala Constitucional garantirá que as competências parlamentares sejam exercidas por esta Sala ou pelo órgão que ela dispor, para velar pelo Estado de Direito.”

O desacato refere-se à situação de três deputados do estado do Amazonas, que tiveram as eleições questionadas e, num primeiro momento, tomaram posse. Meses depois, porém, em meio ao fracassado diálogo com o governo, a AN desincorporou os três congressistas como gesto de boa vontade.

— Estamos vendo a manifestação mais explícita de uma ruptura da ordem constitucional. O suposto desacato é usado como desculpa para desconhecer a AN — afirmou o jurista Juan Manuel Raffalli, professor da Universidade Católica Andrés Bello. — A partir de agora, nossos parlamentares serão magistrados chavistas. Alguns deles foram deputados do partido do governo!

De fato, alguns dos membros da Sala Constitucional do TSJ, como Calixto Ortega, são dirigentes do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) e ocuparam cadeiras na bancada governista. Outros foram alvo de acusações por parte de ONGs locais, como a Acesso à Justiça, que denunciam graves irregularidades envolvendo membros da Sala Constitucional.

Entre os deputados da majoritária Mesa de Unidade Democrática (MUD), a sentença foi interpretada como a confirmação de que a Venezuela vive uma ditadura.

— Iniciamos o caminho da ditadura, e é isso o que teremos de derrotar, todos juntos. Vamos traçar uma estratégia de luta, nas ruas, nos órgãos internacionais, nos sindicatos, nas empresas — disse o opositor Julio Montoya, que teme que o passo dado pelo TSJ possa levar o país a uma anarquia social.

Em abril de 2002, o então presidente Hugo Chávez foi derrubado por um golpe que durou 48 horas, durante as quais foi dissolvida a AN por parte do efêmero e questionado governo de Pedro Carmona. Para Rocio San Miguel, diretora da ONG Controle Cidadão, o chavismo está fazendo exatamente a mesma coisa.

— Estamos presenciando o nascimento de uma ditadura. O chavismo está atuando da mesma maneira que Carmona — assegurou Rocio.— Maduro poderá fazer o que quiser, usará o dinheiro do Estado sem controle algum. Os protestos são criminalizados, temos mais de cem presos políticos e milhares de pessoas anônimas sendo perseguidas.

NOVO APELO POR AJUDA INTERNACIONAL
Diante do agravamento do quadro institucional na Venezuela , o deputado Julio Borges, presidente da AN, pediu um posicionamento claro dos militares.

— As Forças Armadas não podem continuar caladas diante da ruptura da Constituição. Sabemos que a imensa maioria dos oficiais estão contra o caos que acontece na Venezuela — disse ele.

Por enquanto, as Forças Armadas se mantêm fiéis ao governo e não questionam publicamente ações do Executivo. Rocio, especialista em temas militares, crê que o alto comando militar não se oporá ao presidente, mas a incógnita continuam sendo os jovens oficiais.

O presidente da AN estendeu seu apelo à comunidade internacional.

— É importante que nos ajudem a traduzir que isso é uma ditadura e corresponde a um golpe de Estado — disse ao GLOBO o deputado opositor. — Maduro quer governar sem nenhum freio, acha que pode legislar e fazer contratos petroleiros sem passar pela Assembleia. Seu objetivo é conseguir colocar nas mãos toda a riqueza do país. Mas nós queremos mandar ao mundo uma mensagem clara de que essas medidas são nulas e serão anuladas quando chegarmos ao poder.

GOLPE
SE HAVIA alguma dúvida sobre o caráter ditatorial do regime bolivariano de Nicolás Maduro, esta desapareceu com a intervenção da Justiça na Assembleia Nacional da Venezuela, onde a oposição tem maioria.

SUBORDINADO AO Executivo, o Poder Judiciário elimina, de um golpe, o último resquício de democracia representativa no país.

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