sexta-feira, 3 de março de 2017

Onde esbarra a retomada - José Paulo Kupfer

- O Globo

A venda de veículos novos, indicador influente na formação de expectativas na economia brasileira, soube-se já na Quarta-Feira de Cinzas, desabou em fevereiro, contribuindo para o resultado mais fraco para um primeiro bimestre desde 2006. Também em fevereiro, o índice de confiança da indústria, pesquisado pela Fundação Getulio Vargas, perdeu o fôlego que mostrou em janeiro e voltou a cair.

Indicadores como esses, mas com o sinal trocado para o lado positivo, em dezembro e janeiro, foram invocados para sustentar uma nova onda de otimismo insuflada pelo governo e por sua base aliada entre os economistas. Se lá não era o caso de bater o bumbo da recuperação econômica, aqui também não seria correto tocar as notas fúnebres de uma nova reincidência recessiva.

O desabamento das vendas no setor de veículos, indicativo de dificuldades na absorção de estoques e, portanto, no impulso da produção, deveria ser mais bem qualificado. Uma primeira e óbvia ressalva deveria ser a de que, tradicionalmente, o primeiro bimestre, em razão das férias de verão e da expressiva redução de dias úteis quando o carnaval acontece inteiramente em fevereiro, apresenta volume de vendas mais fraco.

Nos dias em que ficaram abertas ao público neste último fevereiro, de fato, as concessionárias venderam 10,8% a mais do que na comparação com a média das vendas em dias úteis, no mês de janeiro. Só que esse volume mais alto ainda é 30% inferior aos resultados de 2014. E, além disso, quando se segregam os números por categoria, o segmento de caminhões, termômetro relevante da atividade econômica, continua muito abaixo da linha d’água, com vendas em fevereiro 11,6% menores do que em janeiro e mais de 30% menos do que em fevereiro de 2016.

Combinando esses dados, só se pode chegar a uma conclusão singela, porém cada vez mais incomum, nestes tempos de polarização em redes sociais e verdades seletivas: a atividade econômica ainda deve levar um tempo para apresentar indicações mais consistentes de recuperação. Os sinais efetivos de que a recessão perde força, em resumo, ainda não são suficientes para dissolver amarras que puxam a economia para baixo.

Quase inteiramente direcionado ao ajuste fiscal, o foco oficial da política econômica tem deixado na sombra o difícil e lento processo de desalavancagem em curso, um dos principais obstáculos à retomada, no curto e no médio prazos. O volume total de endividamento de famílias e empresas está agora em 70% do PIB, tendo recuado de 75% do PIB, em 2015, depois de explodir, a partir de 2005, quando representava apenas 35% do PIB. Reflexo desse quadro, o número de empresas inadimplentes atingiu, em 2016, o recorde de cinco milhões — metade do total de empreendimentos ativos e tem sido custoso sair do sufoco. Também metade das empresas maiores, de capital aberto, não tem conseguido gerar recursos nem sequer para pagar os juros dos financiamentos que carregam.

Uma última constatação do tamanho do problema veio com a descoberta, em levantamento do economista José Roberto Afonso, da FGV-RJ, de que as pessoas físicas, fugindo à lógica e aos registros históricos, pela primeira vez em dezembro e, com mais nitidez em janeiro, superaram as empresas na divisão do crédito disponível. O dinheiro oferecido pelos bancos, na esteira da recessão, vem encolhendo eé a fatia destinada às empresas que se contrai com maior intensidade. Isso se deve, de um lado, às firmas que, às voltas com capacidade ociosa, querem distância dos financiamentos, e, de outro, àquelas que, inadimplentes, não conseguem novos empréstimos.

É fundada a esperança oficial de que a redução agressiva da taxa básica de juros e a queda acentuada da inflação ajudem a aliviar essa situação bem complicada. O que não faz sentido, até porque os exemplos das dificuldades enfrentadas pelas economias avançadas para sair da letargia, mesmo com juros negativos estão aí mesmo, é “esquecer" que a falta de fôlego empresarial e do consumo tende a atrasar mais do que se esperaria as decisões de investimento ou pelo menos de ocupação mais acelerada da capacidade ociosa, retardando, por sua vez, a retomada.

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