segunda-feira, 3 de abril de 2017

À guisa de um prefácio | Luiz Werneck Vianna

Não se pode contar a história do pensamento e das práticas da democracia brasileira contemporânea sem que se considere a influência exercida pela obra de Antonio Gramsci tanto na política quanto na vida cultural. Vale o registro de que o ponto de partida para sua difusão não nos veio da academia, mas de círculos intelectuais que faziam parte da resistência ao regime ditatorial e que encontraram nele fonte de inspiração para a formulação de uma nova forma de pensar e de agir na política, em um movimento de rejeição crítica às concepções dominantes na esquerda brasileira. Foi a partir de suas obras, editadas por iniciativa de notáveis intelectuais, como Ênio Silveira, Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e Luiz Gazzaneo, até então conhecidas por poucos, que a reflexão da esquerda teve acesso a categorias e a um sistema de pensamento que lhe permitiu descortinar os rumos em que se deveria empenhar na sua oposição ao regime militar.

A guinada de alcance estratégico então operada implicou na adoção do caminho da transição política – e não o da ruptura revolucionária – como meio de devolver à sociedade as liberdades civis e públicas. O foco dessa perspectiva, que se demonstrou fecunda, passou a ser dirigido no sentido de conduzir o regime ditatorial a uma derrota política, em crítica aberta aos que preconizavam a sua derrubada a fim conquistar um governo nacional-popular. As repercussões dessa orientação importaram para a esquerda mutações significativas, entre as quais a de centrar suas ações na sociedade civil, na valorização do processo eleitoral como forma superior de luta – o regime militar admitia a existência de partidos e as competições eleitorais, embora sob seu férreo controle –, e, sobretudo, na concepção dos seus sistemas de alianças, inclusive com os liberais.

Mas, como em Gramsci a política é sempre fundamentada no plano da teoria, a sua recepção pela cultura política brasileira importou igualmente na crítica tanto ao positivismo como ao economicismo – vigorosamente denunciados por ele –, ambos instalados em matrizes importantes do nosso pensamento, em particular no modo como a obra de Marx se fazia compreender pela nossa esquerda. Questões enigmáticas como a natureza do processo de revolução burguesa no país, velho calcanhar de Aquiles das narrativas sobre nossa formação, à luz da obra de Gramsci vieram a encontrar explicações persuasivas, muito especialmente na chave conceitual de revolução passiva, pondo uma pá de cal nas concepções etapistas então predominante no nosso modo de pensar a revolução burguesa.

Noutra ponta, tema igualmente candente dizia respeito à natureza do regime militar, apontado de início por um grande número de intérpretes como um projeto orientado à interrupção do processo de modernização do país. Também aí, para a compreensão do que efetivamente ocorria, os textos desse autor sobre americanismo e o corporativismo foram de crucial importância. Tal como Gramsci sugerira nos seus estudos sobre a Itália fascista, seríamos objeto, ao contrário do que sustentava o senso comum vigente, de um processo de americanização perversa feita por cima, imposto a uma sociedade imobilizada pelos recursos coercitivos detidos pelo Estado discricionário.

Os rendimentos da recepção da obra gramsciana não se limitaram ao plano do político, atingindo de pleno o mundo universitário, quando seu pensamento ativou a reflexão de uma geração de pesquisadores das áreas de educação, dos serviços sociais e da sociologia. Nesse sentido, assim como Gramsci podia falar de “um nosso Marx”, o pensamento social brasileiro ganhou o direito de falar em “nosso Gramsci”.

Exemplar da internalização desse autor por parte da nossa cultura política está nessa coleção Brasil e Itália, dirigida por Alberto Aggio e Luiz Sérgio Henriques, responsável pela edição de vários títulos dedicados a estudos gramscianos, entre os quais o notável O jovem Gramsci. Cinco anos que parecem séculos, 1914-1919, de Leonardo Rapone, Vida e pensamento de Antonio Gramsci, de Giuseppe Vacca, o mesmo autor que ora publica esse denso e criativo Modernidades alternativas. O século XX de Antonio Gramsci que o leitor tem em mãos.

Modernidades alternativas, longe de uma resenha crítica, como tantos trabalhos dedicados a Gramsci, é uma exploração de fôlego orientada para a demonstração de que há outras possibilidades para além das concepções liberais para os dilemas contemporâneos postos pelos fenômenos novos da globalização. Bem antes de Habermas, Gramsci defenderia a construção de uma ordem cosmopolita, que, como Vacca argumenta na esteira do autor de que é intérprete, somente seria possível numa perspectiva “em que a ordem mundial seja regulada segundo princípios de interdependência e reciprocidade”.

Como em Ulrich Beck, Anthony Giddens, para citar apenas esses, na leitura criativa de Vacca sobre a obra gramsciana, a unificação do gênero humano é uma possibilidade real, uma utopia realista – um oximoro tal qual o da revolução passiva – que ganha alma e carne com a emergência de grupos interessados numa ordem internacional que seja capaz de defender a sociedade dos riscos que a rondam atualmente com perigo, como os ambientais, e que já imporiam a superação dos limites estreitos do Estado-nação que somente pode admitir princípios universalistas no plano da retórica. Para Gramsci, como para a teoria contemporânea que tem em Vacca um dos seus representantes, a ordem cosmopolita não faria mais parte apenas do léxico da filosofia da tradição kantiana, pois, como ele poderia dizer, já inspira a política em ato.

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