domingo, 7 de maio de 2017

A França de Le Pen

Oposição política e da sociedade civil poderia impedir líder da extrema-direita de cumprir promessas

Fernando Eichenberg | O Globo

-PARIS- Se vencer hoje, Marine Le Pen se tornará a primeira mulher presidente da França, em um inédito governo de extrema-direita no país. Como líder da Frente Nacional (FN), nos últimos anos a extremista deflagrou uma operação de amenização do discurso de linha mais dura e antissemita de seu pai, Jean-Marie Le Pen, excluído por ela do partido. Apesar da maquiagem narrativa, seu projeto de governo obedece à cartilha da direita radical e populista, marcado por um fechamento das fronteiras nacionais; uma moratória da imigração legal e uma forte repressão à imigração ilegal; a saída da zona euro e da União Europeia (UE), ou uma ênfase no patriotismo e protecionismo econômico. Segundo analistas políticos, no entanto, uma vez no governo, serão enormes as suas dificuldades na aplicação das medidas de choque anunciadas em sua campanha. Uma das poucas certezas no caso de sua posse é a nomeação de seu já anunciado primeiro-ministro, o também eurocético Nicolas Dupont-Aignan, do movimento Debout la France (França em Pé). E ainda assim, um premier garantido no posto somente até às eleições legislativas de junho, quando será definida a nova composição da Assembleia Nacional.

SEM MAIORIA PARLAMENTAR
Romain Lachat, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), ressalta que a maioria das ações de governo prometidas por Le Pen depende de uma mudança nas relações da França com a UE. É o caso da reivindicada retomada do controle das fronteiras do país e da imigração, e de certas regulações do setor bancário, itens subordinados às diretrizes europeias.

Na sua opinião, um dos pontos-chave de seu governo seria a eventual saída da União Europeia e da zona euro, uma questão indefinida pela própria candidata na reta final de campanha.

— Ela pretende engajar negociações com a UE, e submeter o resultado deste processo à população, via referendo, o que poderia lhe dar meios de efetivar suas promessas ou, por outro lado, decretar o fim de seu projeto. Mas há muita nebulosidade em vários aspectos, por exemplo, sobre o real teor destas negociações, nunca detalhadas. Caso ela se torne presidente, estamos ainda no desconhecido nesta questão.

Seu colega, Bruno Cautrès (Sciences-Po), enfatiza a complexidade do desafio presidencial lepenista neste embate europeu:

— Ela pretende aplicar medidas espetaculares no domínio da autonomia nacional, do controle de fronteiras, e terá de travar uma queda de braço com Bruxelas e a UE. Mas isso requer uma grande adesão no país, um partido político capaz de endossar este papel, e a criação de uma dinâmica na sociedade. E não creio que nada disso seja possível.

Para o analista Nicolas Sauger, em vez de uma união nacional a seu favor, a Marine Le Pen presidente corre o risco de ter um bloco de oposição político e da sociedade civil a seu governo, em uma intensidade que não ocorreu no segundo turno do pleito:

— Desta vez, poderá realmente haver uma compacta frente republicana, um amplo agrupamento de forças políticas para fazer oposição à presidente eleita. Como outro obstáculo a um possível governo, há unanimidade na impossibilidade de que a presidente Le Pen consiga obter maioria parlamentar na Assembleia Nacional. Na melhor das hipóteses, ela poderia alinhavar algum tipo de acordo se a direita tradicional alcançar a maioria de deputados — o que também não está garantido —, mas ainda assim em desvantagem. Le Pen já insinuou, no entanto, que, sem maioria parlamentar, tentaria introduzir uma reforma do sistema eleitoral por meio de um referendo.

— Ela procuraria introduzir o sistema proporcional — explica Romain Lachat. — Depois, dissolveria a Assembleia Nacional, para refazer o Parlamento sob as regras do novo sistema. Com isso, poderia, talvez, negociar uma melhor coalizão com outros partidos, principalmente com parte da direita. Mas tudo isso me parece muito improvável.

Amarrada em seu combate com a UE, a falta de apoio parlamentar e sob o protesto das ruas, restariam poucas cartas na manga para ações de governo. Uma delas poderia ser a redução do tempo de aposentadoria dos atuais 62 anos para 60, o que, com alguma costura no Parlamento, poderia obter sucesso.

Segundo Nicolas Sauger, a atuação de Le Pen se resumiria em duas áreas:

— Ela poderia atuar nas negociações internacionais e na tentativa de obter alguma influência pela convocação de referendos. Seria uma situação próxima da Polônia ou da Hungria de hoje, em que se pode convocar referendos sobre mudanças institucionais importantes.

DIFICULDADES NAS DEPORTAÇÕES
Na luta antiterrorista, a Marine Le Pen presidente espera endurecer a vigilância do islamismo radical e de organizações islâmicas no país. Mas mesmo sua propagandeada intenção de expulsar todos os indivíduos classificados como suspeitos de laços com o terror é, de acordo com Lachat, de aplicação duvidosa:

— Não creio que essas expulsões possam ser feitas de forma automática. Seja porque são ações que devem ser aplicadas mais lentamente ou porque não dependem só dela e se chocam com tratados europeus ou do direito internacional. As medidas mais emblemáticas de seu programa não poderão ser efetivadas facilmente — comenta Romain Lachat.

Em uma outra área, o analista político Henri Rey assinala uma mudança significativa no caso de uma Presidência lepenista:

— Penso que haverá uma profunda transformação na atmosfera do país. A extremadireita no poder provocaria efeitos consideráveis nas relações do cotidiano das pessoas. Mesmo sem mudar as coisas de forma radical, haverá uma alteração total dos espíritos, do ambiente, do viver junto, um medo do outro, e tudo isso sem prazo de validade — conclui Rey.

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