sexta-feira, 14 de julho de 2017

A raça da USP | José de Souza Martins

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A adoção de cotas sociais e raciais para peneirar o ingresso na Universidade de São Paulo, já a partir do próximo ano, substitui o critério tradicional de admissão nos cursos da mais importante universidade brasileira. Até aqui o ingresso foi com base no desempenho do candidato nos exames vestibulares, independentemente de cor, sexo ou condição social.

Num país majoritariamente de mestiços como o nosso, até de brancos mestiços de diferentes brancuras, de brancos originários de diferentes lugares do mundo e de diferentes classes sociais, é muito difícil determinar a raça de quem quer que seja. Mesmo de negros, de diferentes origens étnicas, ou de indígenas de diferentes grupos tribais.

Quando o Supremo Tribunal Federal julgou a arguição de inconstitucionalidade do regime de cotas adotado pela Universidade de Brasília, apresentou-se como "amici curiae" e opinou um grupo que representava um movimento de pardos, do Norte do Brasil. Descendentes de indígenas, questionavam a confusão, que a USP também faz, entre mulatos e pardos. É um recurso que engorda a cota dos negros e emagrece a cota de pardos e índios. A disputa em torno da categoria "pardo" esconde a usurpação de identidade étnica dos descendentes daqueles que viveram a trágica experiência da escravidão indígena.

Diversamente de tudo que se tem dito para criminalizar a USP e apresentá-la como escola de ricos, desde a origem tem ela critérios de recrutamento dos que são capazes, não importa a respectiva origem social. Quase sempre originário de fora da USP, produzido e difundido por interesses que não são confessados, o boato de que a USP é uma universidade de ricos intimida e bloqueia jovens talentosos, estudiosos e competentes que poderiam e deveriam nela ingressar. Acabam procurando escolas que reputam fáceis, subestimando-se e privando o país de seu talento. As maiores vítimas do boato são justamente os filhos da classe trabalhadora, brancos, negros e pardos.

Nas três universidades públicas de São Paulo não são poucos os casos de estudantes que nelas ingressaram pelos regimes especiais, cujas notas no vestibular são iguais ou superiores à nota média dos ingressantes no regime comum. Teriam ingressado e bem se tivessem disputado a vaga com os não beneficiados pelas cotas.

As cotas sugerem que estamos subestimando a dedicação ao estudo, o esforço e a competência dos simples na habilitação para ingresso em universidades de excelência como essas. Aliás, com o número atual de candidatos talentosos, muito maior do que o de vagas, as cotas serão em boa parte anuladas na prática. Muda apenas o critério do acesso à universidade. Permanece a competição.

Os critérios de democratização do acesso à USP foram até aqui limitados. Mas existiram. O mais importante foi o da criação dos cursos noturnos, especialmente na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Embora nas grandes universidades do mundo o ensino seja em tempo integral, esse critério abriu uma brecha no sistema de acesso à universidade.

Aliás, a USP nunca exigiu a identificação racial ou de classe social nas provas do vestibular. De modo que os examinadores nunca tiveram a possibilidade de fazer qualquer tipo de acepção de pessoa. Cor, classe social, sexo e mesmo atributos físicos não são méritos intelectuais nem deméritos. Portanto, qualquer abertura da universidade para as diversidades sociais deve ser acolhida e aplaudida.

Na universidade só é democrático, de fato, o critério de dar precedência no recrutamento de novos alunos às melhores inteligências e às melhores vocações. A seleção é feita em nome do conhecimento, pois é tarefa da universidade produzir e distribuir conhecimento e não, propriamente, fazer caridade social. Isso compete a outras instituições.

Universidades que abrem mão do critério da universalidade e da competência condenam-se a si mesmas. A universidade é que deve sair à procura desses talentos, que estão em todas as partes e em todas as categorias sociais. É a universidade e, por meio dela, a sociedade que deles precisam.

A questão das cotas só tem sentido nessa perspectiva. Na USP, como nas outras universidades muitos que nelas ingressam não tem o rendimento que a universidade tem o direito e a obrigação de deles esperar. É um luxo elitista que ricos e pobres desperdicem o tempo dos professores e os recursos da universidade sem a devida dedicação ao estudo, demorando-se em reprovações, provas de reposição e outros truques de permanência sem mérito. É luxo elitista, aliás, que em nossas universidades públicas o ano propriamente escolar esteja reduzido a pouco mais de seis meses de aula, sem contar greves e paralisações, compreensíveis, mas obsoletas.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "Linchamentos, A Justiça Popular no Brasil" (Contexto).

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