domingo, 20 de agosto de 2017

Reforma aproxima trabalhadores de condições análogas à escravidão, diz historiadora

Beatriz Mamigonian está lançando 'Africanos Livres' pela Companhia das Letras e concedeu entrevista exclusiva ao 'Aliás'

João Prata*, Colaboração para o Estado / Aliás

A historiadora Beatriz Mamigonian dedicou os últimos 23 anos a pesquisar sobre as primeiras décadas do Estado brasileiro, mais especificamente o momento em que o País, pressionado pela coroa britânica, iniciou um longo e burocrático processo para acabar com a abolição do tráfico de escravos. Em um minucioso estudo, ela reproduz a complexidade política para conseguir de fato fazer valer a lei promulgada em 7 de novembro de 1831, que proibia a importação de escravos.

A medida encontrou resistência especialmente dos proprietários de terras e grandes produtores, que faziam lobby em nome da prosperidade do País. Muitos deputados, senadores e juízes fechavam os olhos para o descumprimento da lei e, conforme Beatriz reproduz no livro, discursavam contra o término do tráfico e, posteriormente, a favor da anistia aos que descumpriram a lei.

Ao Aliás, a historiadora contou sobre seu processo de trabalho e opinou sobre como as injustiças sociais do passado refletem nos dias atuais em meio à reforma trabalhista no Brasil, cotas raciais nas universidades e crise migratória na Europa.

Por que o recorte de maneira tão minuciosa desse período da história brasileira?

A história da abolição do tráfico de escravos para o Brasil só havia sido contada pelos ângulos da diplomacia e da política, isto é, se restringia aos gabinetes, sem considerar o impacto que a proibição teve sobre as pessoas mais afetadas, os africanos. Ao ler os trabalhos que davam protagonismo aos escravos e incorporavam suas lutas à trama da história, resolvi revisitar a interferência britânica na abolição do tráfico brasileiro atentando para a experiência dos africanos que foram emancipados dos navios negreiros.

Qual é o impacto do seu livro para os dias atuais?

Tem um impacto duplo. Trouxe à tona um novo capítulo da história da exploração dos trabalhadores no Brasil, nesse caso do grupo que o Estado brasileiro se comprometeu por acordo internacional a proteger e que acabou sendo tratado como outros trabalhadores forçados: índios, recrutas, prisioneiros, todos cidadãos brasileiros que viviam em condições muito próximas da escravidão mesmo sendo livres. Por outro lado, demonstra em muitos detalhes como os argumentos de manutenção da ordem e de defesa da propriedade serviram para reforçar a escravidão (ilegal), sonegar direitos e solapar os anseios por uma cidadania inclusiva que estavam no horizonte no início do século 19.

Você reproduz discursos de deputados, senadores e juízes. Nos momentos de políticas mais conservadoras, fica muito claro o interesse privado sobrepondo o público...

A conivência com a exploração dos africanos livres e com a escravidão ilegal foi trocada por apoio político. Isso em nome do progresso e da manutenção da ordem, visto que a cafeicultura, e outros setores econômicos se expandiam. Vale dizer que a escravização de pessoas livres era crime previsto no Código Criminal do Império. Por isso, houve campanha para anistiar os detentores de escravos ilegais. A ideia, muito difundida, de que a lei de 1831, teria sido “para inglês ver”, que o Estado não teria intenção de aplicá-la, esconde esse jogo político complexo, e acaba isentando os criminosos.

Como essa política do esquecimento atrapalha a formação de uma identidade nacional?

A maneira como a abolição foi rapidamente apropriada, depois de maio de 1888, por setores conservadores, contribuiu para soterrar a memória das lutas populares e do veio mais radical do abolicionismo. A abolição do tráfico realmente não ficou na memória coletiva. Mas encontrei um veio dessa memória num lugar insuspeito: um baobá, em Nísia Floresta, no Rio Grande do Norte, é um monumento tombado e tem a história atribuída ao tráfico ilegal. A identidade nacional é sempre uma construção, resultado da adesão da população a um país imaginado, desejado. Esse processo é fraturado pelas divisões de classe e raça. Nossa identidade comum será sempre frágil enquanto todos não gozarem de cidadania plena e de proteções de um Estado de direito.

Nesses 20 e poucos anos de pesquisa, como as mudanças tecnológicas afetaram seu trabalho?

Comecei a pesquisa da tese na Biblioteca da Universidade de Waterloo, no Canadá, nos microfilmes. Quando voltei ao Brasil comprei uma leitora de microfilmes usada, tenho até hoje. A digitalização facilitou a possibilidade de encontrar e cruzar informações. Mas os documentos em papel são indispensáveis. O custo de manter um acervo digital atualizado é altíssimo, maior que o de guardar papel em condições adequadas. Os papéis em que eu pesquisei estão perto de fazer 200 anos. As fotos digitais e os discos rígidos que as armazenam não duram isso tudo. Todas as nações soberanas do mundo preservam sua memória, é indispensável que dediquemos parte do orçamento público para investir nisso.

Por quanto tempo precisaremos de políticas de inclusão para remediar abusos no passado?

A política de ações afirmativas busca possibilitar o acesso dos grupos que sofreram e sofrem discriminação sistemática à universidade, à diplomacia, aos concursos públicos. Mas é evidente que a política de cotas não é um remédio para todos os males da desigualdade, visto que as hierarquias sociais no Brasil são complexas. De um lado, temos as cotas, de outro continua a violência contra os jovens da periferia, os índios e os quilombolas. As pessoas admiram o sistema de educação finlandês, mas aceitam a precarização das condições de trabalho dos professores aqui. Enquanto não lutarmos pela igualdade de oportunidades e dignidade de todos, não seremos um país justo.

O tráfico de pessoas marcou o século 19 e impacta até hoje a população africana. Você vê uma saída para a crise migratória, especialmente a da Europa?

Falta interesse e disposição para reconhecer e desmontar os mecanismos de acumulação que lhes beneficiam. O fenômeno da migração internacional não é nada novo, e é gravíssimo que, em pleno século 21, continuemos a assistir ao tráfico de pessoas, ao trabalho infantil, à exploração de imigrantes em condições sub-humanas de trabalho (como na agricultura italiana, por exemplo) e ao fechamento de fronteiras para refugiados. As conquistas do pós-guerra estão todas em xeque. Voltamos a lutar por aquilo que parecia óbvio.

Depois de analisar tanta mudança na legislação da nossa história, você acredita que a atual reforma trabalhista pode banalizar condições identificadas como trabalho análogo ao escravo?

A aprovação da reforma trabalhista, com a oposição da maioria da sociedade brasileira e sem debate é uma afronta a todos que lutaram por condições dignas de trabalho. A flexibilização da jornada, o avanço da terceirização e a dificuldade de acesso à justiça do trabalho vão sim aproximar os trabalhadores das condições que hoje consideramos de trabalho análogo a de escravo: jornadas exaustivas, condições degradantes, restrição de mobilidade e servidão por dívida. O que passou no Congresso foi uma grande desregulamentação da exploração da mão de obra.
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*João Prata é jornalista

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