segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Simples, ruim e irresponsável | Fernando Limongi

- Valor Econômico

Limitar candidaturas é fomentar cartéis

A reforma eleitoral começou a ser votada. A grande invenção de Michel Temer, o distritão, foi aprovado pela Comissão Especial da Reforma Política. Difícil pensar em algo pior. O sistema pregado pelo presidente é primário. O seu resultado prático é previsível: aumentar as taxas de reeleição, bloqueando a possibilidade de renovação da Câmara.

Em sistemas majoritários, como o distritão, potenciais candidatos sabem que o sarrafo é alto, que há grandes chances de que não obtenham os votos necessários para se eleger. Temendo morrer na praia, a maior parte retira o time de campo. Só sai candidato quem parte de um patamar expressivo de votos, o que os deputados em exercício sabem ter.

Do ponto de vista do eleitor, o resultado é a desconsideração completa das preferências da maioria dos votantes. Se você votar em alguém que não se elege, seu voto é simplesmente jogado no lixo. Pelos cálculos de Jairo Nicolau, se o distritão tivesse sido aprovado na reforma Cunha, este seria o destino de um terço dos votos na eleição de 2014.

O distritão, na realidade, é o resultado de décadas de debate irresponsável acerca da legislação eleitoral brasileira. Se há uma unanimidade nacional é a de que o país precisa de uma reforma política. Virou o mantra. Não há quem não a defenda. Nosso sistema está falido, afirmou Rodrigo Maia em seminário na FGV. Pois bem, aí está a tão apoiada 'reforma radical'.

Pode soar estranho, mas muitos especialistas ao redor do mundo defendem o sistema proporcional de lista aberta, o sistema que o Brasil e vários outros países do mundo adotam, como o melhor entre os já inventados. O Banco Mundial já chegou a inscrever a lista aberta entre suas recomendações para combater a corrupção e aumentar o controle dos cidadãos sobre seus representantes.

Tudo bem, nem todos concordam que este é o melhor sistema. Como em tudo neste mundo, esta é uma matéria aberta a controvérsias e disputas. Mas, seja como for, o fato é que não se pode dar como assentado que é necessário mudar e, mais, que a mudança deveria atacar a raiz, o princípio do sistema vigente. Por quê abandonar a representação proporcional? Por quê fechar a lista? Brandir finalidades nobres genéricas, como a 'regeneração do sistema político', é prova da falta de argumentos.
Não há sistema eleitoral perfeito. Sempre há prós e contras. Simplesmente dizer que o sistema atual gera esta ou aquela distorção não é suficiente. Sobretudo sem se levar em conta as distorções que resultarão do sistema proposto. Só pesando as distorções do atual e o do proposto é que se poderia responder a pergunta: vale a mudança? No caso, não vale.

O distritão é o ponto culminante do discurso irresponsável em favor da mudança, de que a 'reforma', qualquer reforma, seria urgente e necessária. Tome-se, a título de exemplo, o apoio do senador José Serra à medida: "O distritão não é proposta nossa [do PSDB], mas de líderes que consideram que a eleição no ano que vem, nas regras atuais, é inviável porque exige chapas com muito candidatos e maximiza despesas. Não sou partidário do distritão, mas entendo que, na transição para o distrital misto, pode ser uma saída."

Deixando de lado o sistema dos sonhos do senador, tratemos dos argumentos invocados para condenar a lista aberta: a multiplicação de candidaturas e a maximização das despesas. Indo direto ao ponto: desde quando multiplicar candidatos é algo a ser combatido? Quanto menos candidatos, melhor a eleição? É isto? Que tal só um candidato?!

A essência da democracia moderna é a competição eleitoral e esta, logicamente, só pode ocorrer se os eleitores têm opções, quando o número de candidaturas excede o de vagas. Limitar candidaturas é restringir a competição, é fomentar cartéis.

De uns tempos para cá, consolidou-se esta ideia bizarra de que o número de candidatos nas eleições brasileiras seria excessivo e que, soterrado por tantas opções, o cidadão acabaria impossibilitado de fazer uma boa escolha. O argumento é capenga. É como se um consumidor, diante de uma prateleira com muitas marcas de sabonetes, fosse incapaz de fazer uma opção e acabasse sem o asseio necessário.

A quem interessa a restrição de candidaturas? Não é ao eleitor. E este é o ponto. Os argumentos apresentados não remetem ao eleitor. Não por acaso, os políticos são os primeiros a se alistar no partido da reforma eleitoral radical. A representação proporcional com lista aberta não é o melhor sistema para as lideranças politicas. Ponto.

Faz tempo, muito tempo, que José Serra não disputa uma eleição proporcional. As estatísticas referentes às despesas eleitorais mostram que as eleições proporcionais são relativamente baratas. Eleições majoritárias (presidente, governos estaduais e Senado), as que Serra vem disputando, nestas sim corre dinheiro grosso e de origem duvidosa. As menções ao senador da parte da Odebrecht e da JBS não se deveram à sua participação em disputas legislativas.

É um mito dizer que as eleições proporcionais com lista aberta são as responsáveis pela corrupção e/ou pelas despesas excessivas das campanhas eleitorais brasileiras. Também é um equívoco achar que cidadãos queiram "minimizar despesas". Não está demonstrada qual vantagem obteriam.

Já para os políticos, a vantagem é evidente: poucos candidatos e despesas modestas podem garantir a renovação de mandatos com pouco esforço.

Vendida à opinião pública como passo indispensável à regeneração moral do país, a reforma eleitoral visa, na verdade, diminuir a competição e a incerteza eleitoral. O distritão pode até ser apenas um bode a ser retirado da sala. Muito provavelmente será derrubado no plenário. Não importa. Importam as justificativas, os objetivos. A reforma atende aos interesses dos políticos, não dos cidadãos. Simples, ruim e irresponsável.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.

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