quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Francisco Ortigão*: Gilmar Mendes, o legalista

- O Estado de S. Paulo

O ministro Gilmar Mendes pode não estar com a popularidade muito em alta na sociedade, mas vem se consolidando com o maior defensor, no Supremo Tribunal Federal (STF), dos direitos e garantias fundamentais consagrados, no Brasil, na Constituição Federal de 1988. A proibição da condução coercitiva é mais um capítulo dessa história.

Ainda que em caráter liminar, atendendo ao pedido do Partido dos Trabalhadores, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 395 (ADCP 395), após a condução coercitiva do ex-presidente Lula. A decisão, que será analisada pelo colegiado da Corte, não é de pouca monta, considerando o clima de caça às bruxas que toma conta atualmente do país.

Não é porque a Lava-Jato já cumpriu mais de 100 mandados de condução coercitiva que a medida deve ser considerada constitucional. Ela consta do Código de Processo Penal (CPP), que entrou em vigor em 1941 e foi elaborado durante a Ditadura Vargas. Este Código não está totalmente adaptado aos princípios do contraditório e da ampla defesa, e aos tratados internacionais de respeito aos direitos humanos já ratificados pelo Brasil.

No processo penal, o uso de cautelares, como a condução coercitiva e a prisão cautelar, é mais delicado do que no civil, uma vez que afeta a liberdade de locomoção e a intimidade, mais do que o patrimônio. Daí a prudência em sua aplicação. A questão do abuso da condução coercitiva assemelha-se à conhecida prisão para averiguação da época da ditadura. Trata-se de ampliação do controle do Estado sobre a liberdade de ir e vir do cidadão e, muitas vezes, afronta o direito de não produzir prova contra si mesmo, que é inconstitucional. A Constituição de 1988 admite como única exceção a prisão cautelar que tem outros fundamentos.

O ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, se manifestou em Parecer, no início de fevereiro, na ADPF 395, favorável à manutenção da condução coercitiva. Para ele, a condução serve ‘para identificação do imputado, ou seja, para saber quem é a pessoa potencialmente autora do delito e proporcionar certeza sobre sua identidade’ e para ‘neutralizar riscos para o processo, mais especificamente para a aplicação da lei penal, a investigação ou instrução criminal ou a ordem pública’. “Em geral, é decretada para evitar que imputados estabeleçam versão concertada sobre fatos ou, especialmente, para impedir que destruam provas”, escreveu.

Além disso, Janot argumentou que a condução evita a imposição de medida cautelar mais grave. Ou seja, no entendimento dele, caso a condução coercitiva venha a ser declarada inconstitucional, os juízes passariam a recorrer ainda mais à prisão temporária, gerando efeito contrário ao que se poderia pretender.

Ora, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, e a identificação de um cidadão no século XXI não deve pressupor a sua prisão, ainda mais diante da presunção de inocência.

Um possível abuso da prisão temporária não pode servir de justificativa para o abuso, ainda que menor, da condução coercitiva. Ambos devem ser evitados. Por isso, há o crime de abuso de autoridade. A tese do mal menor não deve ser utilizada quando estamos tratando de direitos humanos e civis que somente comportam interpretação ampla e extensiva.

Seguindo o mesmo raciocínio, merece especial atenção a Ação Declaratória de Constitucionalidade 43 (ADC 43), proposta pelo Partido Ecológico Nacional (PEN), para a manifestação positiva de constitucionalidade pelo STF acerca do artigo 283 do CPP, com redação da Lei 12.403/2011.

Diz a redação do mencionado artigo que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”, se adequando ao Princípio da Presunção de Inocência, previsto no art. 5º, inciso LVII, da CRFB.

Ambas as normas são expressas quanto à presunção de inocência anteriormente ao trânsito em julgado da decisão condenatória, sendo inaceitável a invocação, por parte do Supremo Tribunal Federal, de razões abstratas, em especial a “efetividade do sistema de justiça criminal”, como pretexto para reduzir as garantias e direitos dos indivíduos.

Portanto, a aniquilação de garantias individuais constitucionalmente garantidas, como o estado de inocência que vige até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, nos termos do art. 5º, LVII da Constituição, nunca poderá servir como fundamento para equilíbrio e funcionalidade do sistema punitivo brasileiro.

Vivemos tempos difíceis em que a intolerância tem sufocado a memória de violação de direitos que passamos em diversas fases de nossa história.

Pois foram justamente essas violações, não só no Brasil, como na Europa destruída pela guerra e em todo o mundo, que se desenvolveram as garantias fundamentais.

Nos últimos anos, porém, com frequência crescentemente maior, ouvimos relatos diversos e testemunhos das violações perpetradas contra a própria advocacia. Em especial, quando atua-se na defesa. Assim, cabe uma reflexão específica sobre o modo segundo o qual as instituições do Estado responsáveis pela persecução penal e pelo julgamento das ações alegadamente criminosas observam a atividade defensiva.

Na Constituição, os Direitos Sociais vêm na frente da organização do Estado e de sua intervenção na economia. Há uma nítida eleição de prioridade pelo Poder Constituinte de 1988.

É preciso remar mais forte, no contrafluxo do autoritarismo, dos excessos no emprego de métodos ocultos de investigação, da ética utilitarista. A luta é pelo resgate das regras do jogo.

Afinal, o campo de disputa encontra-se tomado por uma visão hegemônica das instituições de Estado de que não há regras previamente definidas e que este é o caminho certo a ser seguido. E qualquer reflexão contrária à hegemonia acaba reduzida a pobres dicotomias como bandidolatria x impunidade, coxinhas x mortadelas.

Daí a importância fundamental que assumiu o ministro Gilmar Mendes, contra o coro popular, a favor da lei.
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*Francisco Ortigão é criminalista; professor de Direito Processual Penal da UFRJ; membro do Conselho Nacional da Advocacia Criminal, órgão deliberativo da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim); e membro da Comissão de Direito Penal do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros), que elaborou uma das propostas analisadas pela Comissão Especial que elabora novo Código de Processo Penal

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