quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Monica De Bolle: Certezas

- O Estado de S. Paulo

O fato é que as reformas nada fizeram para consertar nossas contas, nosso déficit elevado e nossa dívida galopante

Alguns atribuem a Benjamin Franklin outros a Mark Twain a famosa citação sobre a morte e os impostos, as únicas certezas possíveis na vida. Em ano que está fadado a ser caracterizado pela incerteza política nos Estados Unidos, no Brasil, no restante da América Latina, este artigo trata das certezas tributárias absolutas. Certezas que já fazem ou haverão de fazer parte da política econômica nos EUA, onde moro, e no Brasil.

Pouco antes do Natal, o Congresso americano aprovou ampla reforma tributária, alvo de muitas críticas e ataques de analistas norte-americanos e brasileiros. A reforma é a mais abrangente desde 1986, quando o então presidente Ronald Reagan reformou o código tributário, abrindo o flanco para os déficits fiscais elevados que mais tarde seriam ajustados pelo governo Clinton.

Há duas principais críticas à reforma tributária atual: a primeira é que ela irá gerar déficits e dívidas ainda maiores do que os vistos no fim dos anos 80 e início dos 90, inclusive porque o ponto de partida atual não é nada auspicioso; a segunda é que a forma encontrada por republicanos para cobrir parte dos rombos gerados futuramente reduzirá benefícios tributários para os menos abastados levando a um aumento da desigualdade de renda. Tais críticas são pertinentes. Contudo, nem tudo o que está contido na reforma dos EUA é ruim.

Antes da reforma, há muito se sabia que o sistema tributário americano para as corporações apresentava dois grandes problemas. De um lado, a alíquota estatutária era de 35% -- a efetiva era mais baixa, em torno de 27%, devido à profusão de regras complexas para a dedução de impostos – o que fazia dos EUA o país com os maiores impostos corporativos entre as economias maduras, cuja alíquota média era de uns 20%. Ao reduzir os impostos sobre as empresas para 21%, a reforma americana equipara o país aos seus pares, aumentando a competitividade relativa de grandes multinacionais, geradoras de emprego no mundo todo, não só nos EUA.

De outro, a reforma eliminou anomalia relevante no sistema americano: antes, todo o lucro auferido por uma multinacional era tributado em algum momento, ou seja, o regime de impostos era global, não territorial como o que caracteriza a maior parte dos países da OCDE, sobretudo os europeus. O caráter global do regime tributário significava que muitas empresas multinacionais norte-americanas preferiam realocar-se fora dos EUA e deferir o pagamento de impostos sobre os lucros, ou mesmo nada repatriando para fugir dos tributos elevados. Tal prática criava distorções, além de prejudicar o manejo das contas públicas e a previsibilidade das receitas. A mudança para um regime mais parecido com o que vigora no resto do mundo desenvolvido, onde impostos são cobrados no território e multinacionais não pagam tributos sobre os lucros obtidos em suas operações externas, torna o sistema mais eficiente.

Há possibilidade de que outros países resolvam seguir os EUA, provocando corrida global para a redução dos impostos corporativos, espécie de desvalorização competitiva por meio da tributação? É claro que há. Mas, isso não invalida o argumento de que ao menos uma parte da reforma de Trump foi, sim, positiva. É importante saber reconhecer os aspectos favoráveis de algumas reformas, ainda que não sejam implantadas por seu líder favorito.

Para quem acaba de ler essa frase e acompanha o que tenho escrito sobre as reformas de Temer, o ponto pode parecer incongruente. Afinal, tenho sido crítica contumaz de tudo o que se anuncia como a melhor reforma. Jamais cedi à tentação fácil de afirmar ser uma reforma boa o suficiente simplesmente porque era diferente de tudo o que o governo anterior fazia – governo que, aliás, critiquei com veemência durante toda a sua vigência.

Contudo, o fato incontestável é que as reformas brasileiras nada fizeram para consertar nossas contas públicas, nosso déficit elevado, nossa dívida galopante. Essa tarefa ficará para o próximo governo que iniciará seu mandato com a obrigação inglória de pôr em marcha a inescapável certeza tributária da elevação de impostos, deixando de lado, mais uma vez, a urgente reforma tributária de que o País necessita.
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Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

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