domingo, 1 de abril de 2018

Cacá Diegues: A última espada

- O Globo

A verdadeira paz não se dará nunca na obrigação de sermos iguais, mas sim no direito de sermos diferentes e sabermos conviver com essa diferença

Vou repetir o que escrevi aqui, domingo passado: quem matou Marielle Franco estava tentando matar o amor. A mais sofisticada e completa forma de amor contemporâneo que ela cultivava — os direitos humanos, uma experiência de amor por todos. Esse era o objetivo dos que eliminaram Marielle, punindo-a e nos avisando do que são capazes se insistirmos no mesmo rumo.

Com as eleições de outubro, tentaremos pôr o Brasil em ordem. Não a ordem fascista, nem a ordem liberal só na economia, como eles querem nos impor para melhor nos explorar. Durante a campanha, seremos afogados em palavras que, na maior parte das vezes, não querem dizer nada. Suportaremos essa avalanche de nadas, em nome de uma inflexão democrática que nos coloque novamente no rumo do crescimento com liberdade, alegria e justiça.

Vamos defender a liberdade de todos em tudo. Não podem ser livres apenas os que ganham dinheiro ou mandam no país. A liberdade é um direito de todos, seu único limite é o direito de cada um. Devemos ser livres diante das ideias e da criação, da natureza e do comportamento, sempre sem prejuízo de ninguém. Para exercermos a liberdade em sua plenitude, é preciso que tenhamos todos as mesmas oportunidades. É sobretudo para isso que deve existir o Estado.

Os homens nascem iguais mas não se desenvolvem do mesmo modo; é impossível que isso aconteça, não é de nossa natureza. Mas é democrático que todos tenham as mesmas oportunidades; só assim há de se impor a diferença de cada um. Para que isso aconteça com justiça, começamos na educação, a base democrática de onde florescem as oportunidades para todos.

Não estou pregando unidade nacional para as eleições de outubro. O unionismo é inimigo da democracia. Ele precisa da desistência do conflito, em nome de falsa paz política e social de fachada. A verdadeira paz não se dará nunca na obrigação de sermos iguais, mas sim no direito de sermos diferentes e sabermos conviver com essa diferença. A disputa em paz é o verdadeiro ambiente da democracia.

Sociedades em formação, como a nossa, necessitam de um sistema de segurança pública igualitário e justo. Não precisamos de xerifes voluntaristas, mas de árbitros que conheçam nossa comunidade e nos ajudem a viver segundo nossos próprios costumes. Até hoje deploro o desmantelamento de nossas UPPs, que poderiam prestar esse serviço de autossegurança, se não tivessem sido tão despersonalizadas pela ganância e pela ausência de vontade política.

Há 50 anos, outra vítima da violência foi abatida nas ruas desta cidade, o secundarista Edson Luís, assassinado pela polícia da ditadura. O assassinato de Marielle e Anderson não se parece com o dele. Enquanto Edson Luís foi morto sem ter sido um alvo escolhido, uma espécie de assassinato anônimo praticado pela barbárie tresloucada da ditadura despreparada, Marielle foi escolhida para ser morta por armas que sabiam para onde estavam apontando. E era nessa direção que desejavam nos alvejar a todos, “a última espada de todas”, como dizia Nietzsche.

No fundo, o que estamos querendo defender e estimular, em nome da morte boçal de Marielle e Anderson, é o direito mais específico da humanidade, o mais nobre entre os que ela cultiva, exatamente o que a distingue dos outros animais e de toda a natureza — o direito à busca da felicidade.
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Tenho viajado muito nesses últimos dias e semanas, o que me tem impedido de assistir a dois produtos audiovisuais que devem interessar a todo brasileiro curioso de seu país.

O primeiro é a série “O mecanismo”, produzida pela Netflix, empresa que montou uma plataforma audiovisual original que em pouco tempo tornou-se ascendente ou majoritária em todo o mundo. Embora a Netflix não se dê ao trabalho de anunciar, em nenhum dos materiais de promoção e propaganda da série, “O mecanismo” foi criado e realizado pelo nosso premiado cineasta José Padilha, o mesmo dos grandes sucessos de “Tropa de elite 1 e 2”. Se nenhum artista merece um tal anonimato, imagine só alguém com o currículo de Padilha. Espero que, pelo menos nos créditos da série, sua autoria esteja clara.

O outro audiovisual brasileiro de importância, que pode ser visto nos cinemas neste momento, é o filme de Eduardo Escorel “Imagens do Estado Novo”, uma montagem de documentos, imagens e sons da ditadura de Getúlio Vargas, de 1937 a 45. Por causa da importância do presidente Vargas nas campanhas nacionalistas dos anos 1950 e, talvez, até mesmo pela lembrança mais recente do regime militar de 1964 a 85, costumamos não dar importância ou simplesmente omitir a existência daquela outra ditadura fascista e cruel, o Estado Novo.

Estas são duas ótimas oportunidades para discutirmos o que estamos fazendo deste país. Padilha e Escorel, dois grandes cineastas brasileiros de diferentes gerações e com formação distinta, nos dão um exemplo de dedicação ao esclarecimento daquilo que fomos e do que estamos sendo. Acho que ninguém deve perder nenhum dos dois. Eu não vou perder.

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Cacá Diegues é cineasta

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