segunda-feira, 4 de junho de 2018

Fernando Limongi: Irmãos da estrada

- Valor Econômico

Signos do novo precisam ser postos em perspectiva

A greve dos caminhoneiros gerou estupefação e perplexidade. Analisando a primeira semana do movimento, a Ombusdman da Folha de São Paulo sentenciou: "A imprensa foi atropelada". Para Paula Costa, os jornalistas estariam despreparados "para cobrir e explicar as origens, os personagens e os desdobramentos do movimento." A paralisação, concluiu, "surpreendeu a maioria dos brasileiros".

Estimulados pelo que entenderam ser uma novidade, os intérpretes de plantão não demoraram a avançar explicações. Ouviu-se de tudo um pouco. Não faltou quem se dispusesse a lançar mão de esquemas ambiciosos sobre as transformações da sociedade brasileira. A greve dos caminhoneiros chegou a ser identificada como o embrião de mudanças de proporções sísmicas e profundas, como se o Brasil estivesse na beira de uma revolução. Os menos otimistas recorreram à incivilidade atávica dos brasileiros para dar conta do flerte com o caos gerado pelos bloqueios. O must foi comparar com 2013, apoiando-se no paralelismo entre os centavos das passagens de ônibus e os reais do preço do diesel.

Os signos do novo, contudo, precisam ser postos em perspectiva. Faz tempo, muito tempo, que os caminhoneiros e seus bloqueios fazem parte da cena política brasileira. O movimento da semana passada teve muito pouco de novo, sobretudo se comparado aos que ocorreram durante o governo Dilma.

A primeira grande paralisação ocorreu em julho de 2013, quando estradas foram bloqueadas por quatro dias. Em fevereiro e março de 2015, sob a liderança da CNTA e da UNC, o bloqueio foi maior e mais bem sucedido, levando ao desabastecimento de dezenas de cidades. Novos bloqueios ocorreram em outubro de 2015, desta feita sem pauta específica para o setor e em conexão direta com o movimento pelo impeachment de Dilma.

As diversas paralisações foram desencadeadas por associações e confederações que representam os condutores autônomos, mas em todas elas não foi difícil discernir produtores e empresas de transportes por detrás do movimento. Foi assim em 2013, 2015 e não foi diferente em 2018.

Parte do imbróglio no setor se deve à promulgação da Lei 12.619 de 2012, conhecida como a Lei do Descanso. Fundamentalmente, a lei estendeu uma série de direitos trabalhistas aos caminhoneiros, como limites de jornada de trabalho e intervalos para repouso. A reação à aplicação da lei esteve na origem do movimento desencadeado em julho de 2013, quando o governo teve força para resistir sem fazer maiores concessões.

Quando os caminhoneiros voltaram a parar e bloquear estradas no início de 2015, fragilizado, o governo se viu forçado a ceder e fazer concessões, expressas na Lei 13.103, conhecida, paradoxalmente, como a Lei do Caminhoneiro.

Justificando a alteração, o deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), relator da nova lei, afirmou que a lei de 2012 havia se mostrado "completamente desconectada da realidade das estradas brasileiras. Por isso, fizemos alguns ajustes e adaptações". Entre os 'ajustes', a ampliação da jornada máxima de trabalho de 10 para 12 horas e do período máximo no volante de 4 para 5,5 horas contínuas.

Para além das questões trabalhistas, a nova lei passou a permitir que caminhões transportassem cargas 10% acima de seu peso, favorecendo, como explicou Paulo Tarso Vilela de Resende em entrevista à Folha de São Paulo, os segmentos "com mais carga, com valor agregado menor e peso bruto maior".

Além disso, como notou Maria Cristina Fernandes, a lei de 2015 "antecipou em dois anos a flexibilização que se veria na reforma trabalhista do governo Michel Temer. Ainda que trabalhe para uma única empresa, o motorista é considerado autônomo."

Mas nem todos se deram por contentes com as vitórias obtidas e o movimento se dividiu entre os que aceitaram o acordo e os que queriam manter a tática de bloqueios para fustigar o governo. A cisão e a pulverização do movimento estão relacionadas com as conexões estabelecidas com a campanha pelo impeachment. Para os mais radicais, para os que querem manter os bloqueios, as demandas deixam de se ater ao setor para ganhar cores políticas.

Em outubro de 2015, liderados por Ivar Schmidt, do Comando Nacional dos Transportes (CNT), os caminhoneiros voltaram a bloquear as estradas. Conforme noticiou El País: "sem o apoio de entidades sindicais, os caminhoneiros autônomos encontraram amparo em outros grupos que defendem a saída de Rousseff. Nesta terça-feira, lideranças dos caminhoneiros se juntaram aos representantes do Movimento Brasil Livre (MBL) que estão acampados em frente ao Congresso Nacional em Brasília para aumentar o coro pelo impeachment". Entrevistado pelo Estado de Minas, o líder do movimento afirmou contar "com o apoio de grupos que pedem a saída de Dilma, como o Vem Pra Rua, o Revoltados On Line e o Movimento Brasil Livre (MBL)." Fábio Roque, outro líder do movimento, declarou à Agência Brasil: "Nós lutamos pela salvação do país, e isso só será feito a partir da deposição da [presidenta] Dilma, seja por renúncia ou por impeachment."

Assim, os caminhoneiros, ou melhor, grupos de caminhoneiros, passaram a integrar a linha de frente da ala mais radical dos que iam às ruas para pedir o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Para os membros desse grupo, bloquear estradas e paralisar o país era o método pelo qual lutavam pela "salvação do país". Entre esses, sem dúvida, estavam os que, na semana passada, desfraldaram as faixas em favor da intervenção militar.

O movimento dos caminhoneiros, portanto, tem origens conhecidas. Não é de hoje que empresários do setor recorrem ao bloqueio de estradas para arrancar concessões do governo.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.

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