segunda-feira, 4 de junho de 2018

Vinicius Mota: A volta dos cruzados

- Folha de S. Paulo

Em 1986, empresários gananciosos eram o problema; hoje, establishment político é o inimigo imaginário

Em língua franca, a maldição rogada por Deus contra o homem enxotado do paraíso foi esta: “Rala, desgraçado, e depois retorna para a lama da qual vieste”.

O Brasil remou, remou, remou e voltou para o seu lodaçal arquetípico, localizado na década de 1980. Naquela época, sonhávamos com derrotar a inflação num só golpe.

Os inimigos da pátria eram banqueiros internacionais e empresários locais gananciosos. Porrada neles, ordenou o governo Sarney. Em 1986, o PMDB do presidente maranhense arrebatou respaldo na sociedade, no Congresso e nos estados como nenhum outro partido depois.

Congelem-se os preços, reprimam-se os remarcadores, confisquem-se os bois dos sabotadores. No auge, o Cruzado fez jus ao nome pela cruzada empreendida por políticos, autoridades e população em transe contra os infiéis que lhes negavam acesso à terra santa da estabilidade.

O governo de hoje, premido pelo descrédito, atende de modo parecido ao lobby dos caminhoneiros, embalados no apoio de uma opinião pública que sonha com o Éden. Tabelem-se fretes e quem sabe os combustíveis, multem-se os postos que não derem desconto no diesel.

Voltam as siglas da burocracia do abastecimento. Sob Sarney, fiscais da Sunab levavam consumidores à glória e varejistas ao terror. Agora a Conab dará de bandeja fatia gorda de seus fretes a um grupo rebelado.

Há 32 anos, brasileiros cheios de civismo entoavam o hino pátrio em supermercados rendidos. Na semana passada, grevistas briosos cantavam os versos nas estradas.

Nos dois casos, acreditavam que estavam mudando para melhor o país ao combater um inimigo comum que impedia a realização dos desejos do povo. Empresários nos anos 1980; o establishment político hoje.

Em ambas as ocasiões, estavam apenas repassando a conta do porre nacionalista para a fatia mais desprotegida dos usuários dos serviços públicos e as futuras gerações. Na democracia, o inferno somos nós.

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