quinta-feira, 7 de junho de 2018

Maria Cristina Fernandes: Um esforçado leitor de Maquiavel

- Valor Econômico

A calúnia a Temer contradiz seu autor de cabeceira

Recepcionado com euforia na inauguração do comitê do candidato do PT à sucessão do seu irmão Cid, no governo do Ceará, em 2014, o ex-ministro Ciro Gomes se valeu de cinco adjetivos para se referir ao senador Eunício Oliveira (PMDB), que rompera com a família por não ter sido o escolhido para a cabeça de chapa: aventureiro, mentiroso, pinóquio, pinotralha e lambaceiro.

Quatro anos depois, Ciro, em balanço do jornal "O Povo", de Fortaleza, acumulara 80 processos apenas na Justiça estadual, dos quais 37 movidos por Eunício. A animosidade não impediu que Ciro, em evento em Sobral, cidade comandada por Ivo, o caçula dos Gomes, sinalizasse uma aproximação com o presidente do Senado, candidato à reeleição: "Se Eunício viabilizar recursos para o Estado, eu agradeço publicamente. Ao invés de perseguir, ele ajudou. Se amanhã isso vai criar ou não um ambiente que adversários de ontem podem dar as mãos com respeito do povo, só o tempo vai dizer."

Seus ambiciosos planos para a Previdência, revelados ontem pelo Valor, exigiriam o manejo ao limite do duelo entre retórica e conciliação que marcam a prática política do pré-candidato do PDT. A entrevista ao "Roda Viva" da semana passada foi farta em tentativas. A começar da maneira encontrada por Ciro para lidar com seu proverbial pavio curto. Ante as provocações, exibiu seu esforço em esticá-lo.

Foi assim também que fez merchandising de sua negociação com petroleiros quando da passagem pelo Ministério da Fazenda: "Você endurece e senta para negociar. Às vezes o endurecimento é só retórica".

Ninguém recebeu uma retórica mais dura durante a entrevista do que Michel Temer. O presidente da República foi chamado de "escroque" (indivíduo que se apodera de bens alheios por manobras fraudulentas, segundo o Aurélio) ao vivo e em cores. Michel Temer pode sair dessa com um dinheirinho a mais. Quando foi chamado de "ladrão fisiológico" e "chefe da quadrilha" por Ciro, obteve na Justiça uma indenização de R$ 30 mil.

Escorregaria ainda, ao final da entrevista, ao chamar de "nazistas", "vendilhões da pátria" e "entreguistas" os opositores do regime venezuelano e de "chavismo que não mais se sustenta" os partidários de Nicolás Maduro. Os governos do PT e de Michel Temer tomaram lado. A moderação, acredite eleitor, virá do Brasil de Ciro Gomes.

Na TV, a retórica é pela rejeição da aliança com o partido de Temer e Eunício. O MDB é o escolhido para o desmonte porque "só existe para roubar". Mas Ciro também rejeita candidatura a "madre superiora do convento" em contraponto à ex-senadora Marina Silva (Rede). Indagado como faria para governar com um partido de 20 deputados, sugere a espetacular meta de triplicar a bancada do PDT, que estaria colado ao PSB e ao PCdoB. A aliança, no entanto, não chegaria a 100 deputados, um terço do quórum constitucional.

O mandato de deputado federal foi o pior emprego que já teve, mas esse lugar tão hostil não atemoriza o candidato que quer ser amado e temido como o príncipe de Maquiavel, ainda que se mostre resistente aos seus ensinamentos sobre a injúria. Face ao risco de ser emparedado se incapaz de fazer tramitar suas ambiciosas reformas constitucionais, diz: "Sou do ramo, sou treinado nisso, não sou a Dilma [Rousseff]".

Se é verdade que "o MDB chega!", o candidato dificilmente teria alternativa a uma aliança com os partidos do Centrão, a arena travestida de MDB. Não lhe foi oferecida, no entanto, a oportunidade de exibir sua retórica ante uma provável candidatura à reeleição do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, projeto que, por enquanto, unifica PP e DEM, líderes do Centrão.

Na entrevista, Ciro ensaiou tocar de raspão na Previdência. A proposta parece ser o principal capítulo de sua carta ao sistema financeiro. O cravo requer a ferradura. Entrega a reforma mas taxa lucros e dividendos em retórica caprichada: "O Itaú distribuiu R$ 9 bilhões em dividendos para quatro famílias que não pagaram um centavo. Esses caras não vão me perdoar. É um dos cinco bancos que monopolizam 85% das operações financeiras e cobram 282% no cheque especial."

A reforma da Previdência teria três etapas. A primeira, bem explicadinha, até porque inofensiva, é o benefício de um salário mínimo para todos os brasileiros, tenham ou não contribuído, garantido pelo Tesouro. A segunda veio numa fala atropelada: "Um limite de dois e meio, três e meio ou quatro e meio, a depender da negociação, em regime de repartição". A terceira, a capitalização.

Em miúdos, isso significa rebaixar até a metade o teto do atual benefício previdenciário para trabalhadores do setor privado e público. Mas saiu tão ligeira, que mal pôde ser compreendida. Ele espera usufruir do beneplácito dos seis primeiros meses de mandato para passar o que quiser no Congresso, na linha do mal que tem que ser feito de uma só vez. Ao final da entrevista, quando ninguém mais se lembrava de sua proposta, arriscou-se a dizer que, para enfrentar minorias organizadas em votações como a da reforma da Previdência, "que não passaria jamais no Congresso", lançaria mão de um plebiscito.

Ciro não tem o carisma do ex-presidente Lula, mas administra com sucesso o ativo de candidato que parece saber o que fazer com o país. A retórica é dosada ora para tentar dar conta da demanda por autoridade num país em rodopio, ora para mostrar um candidato capaz de dominar e fazer blague de seu próprio descontrole. Mas Ciro ainda tem muito chão pela frente para harmonizar a retórica e a conciliação com suas ambições no poder.

Lula conseguiu governar com os 300 picaretas do Congresso porque foi o presidente mais popular da história. Ainda assim, arriscou seu mandato no mensalão e caiu no funil da Lava-Jato. Ciro bate no peito para exibir sua ficha limpa, mas tem menos ferramentas para dar conta de aventureiros, mentirosos, pinóquios, pinotralhas, lambaceiros e escroques. Seu autor de cabeceira recomenda cuidado para não se fazer injúria grave a algum daqueles de que se serve.

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