- O Estado de S.Paulo
Crises exigem observar com desconfiança as instituições que regem o trato dos cidadão com os Poderes. Usemos justas aspas nas antífonas do pensamento raso expresso em universidades, mídia e opinião pública. Não é fato que no Brasil “as instituições funcionem normalmente”. A menos que, por normalidade, se designe a teratologia a que o País se acostumou. Tal clichê namora o absurdo. Como poderia viver segundo normas um país onde administradores não prestam contas dos recursos financeiros, humanos e técnicos a seu dispor? Pode ser normal uma terra onde parlamentares legislam descaradamente em causa própria? Normal um Estado cujos magistrados causam bilhões de prejuízo ao erário e buscam acrescer substanciosas remunerações e privilégios? Normal um sistema de Poderes divorciado da cidadania, em que quem deve servir serve a si mesmo e humilha os contribuintes?
Ora, senhores, silenciem o mantra da “normalidade”, encaremos o monstruoso: sob o manto democrático impera na política, nas finanças públicas, na polícia e nos tribunais o arbítrio mesclado à demagogia.
Tomemos a política injusta exposta por Jean Bodin. No poder tirânico “o governante, pisando as leis da natureza, abusa da liberdade dos governados como se eles fossem escravos, e dos bens de outrem como se fossem seus” (Seis Livros da República, livro 2, cap. 4). Adianta o jurista: entre as prioridades tirânicas está o aumento de impostos.
Tiranos, arremata, assumem slogans (devises) belos e títulos divinos, mas a diferença entre eles e o governante justo é que o segundo labuta pelo bem público, mas eles cuidam apenas do seu proveito privado. O Supremo Tribunal Federal (STF) exige para si o título divino: protetor da Constituição! Mas a sua história mostra que, não raro, o suposto protetor se transforma em aliado da alcateia.
Ocorre nele a metamorfose narrada por Platão, autor realista que narra a origem da tirania. Numa situação política injusta surgem “denúncias, processos, lutas de uns com os outros, em grande número. O povo tem o costume de pôr uma pessoa qualquer à sua frente, para o desenvolvimento de sua grandeza. A tirania se origina da semente daquele protetor”. Platão retoma um mito: “Quem provar vísceras humanas, cortadas ao bocados no meio das de outras vítimas, é forçoso que se transforme em lobo”.
Uma técnica predileta do lobo/tirano é aumentar imoderadamente o fisco “para que os cidadãos, empobrecidos pelo pagamento de impostos, serem forçados a tratar do seu dia a dia e conspirem menos contra ele” (República, 565a- 569a).
A metamorfose do protetor em lobo inspira o pensamento jurídico do Ocidente. É impossível entender a doutrina hobbesiana sobre o estado de natureza, em que o homem é o tirano do homem, sem a base platônica. Maquiavel dela se nutriu de modo evidente para quem o estuda com rigor. A tese de Jean Bodin lhe deve o peso heurístico e a força política. O tirano, fulmina Platão, usa um filtro fatídico para triar pessoas. Nele os bons são retirados e os péssimos, mantidos. A purga efetivada pelos médicos é invertida: os humores doentios permanecem – a gentalha que apoia o arbítrio e a violência oficial – e os humores saudáveis são expelidos – os honestos. Desconheço análise mais dura sobre a instauração dos governos ditatoriais. Quem pretende lutar pelas liberdades públicas deve manter Platão na cabeceira.