- El País, 19/12/2018
Como deixar de apenas reagir, submetendo-se ao ritmo imposto pela extrema direita no poder, e passar a se mover com consistência, estratégia e propósito?
A violência dos últimos anos, que culminou nas eleições de 2018, tampou os ouvidos para o que poderia ser considerado o outro lado. Os gritos acusavam a impossibilidade de votar em Jair Bolsonaro (PSL) depois de ouvir o discurso de ódio que ele pregava. Gritou-se até quase acabar a voz. O fato é que a maioria dos eleitores que escolheu um dos candidatos escolheu Bolsonaro, e ele está eleito e já começou a governar desde o dia seguinte ao segundo turno, embora só assuma oficialmente em janeiro. Desde então, ou mesmo muito antes disso, os grupos que se opõem a Bolsonaro se limitam a reagir. A cada declaração, a cada ministro, a cada indício de corrupção amontoam-se mais gritos. É necessário reagir. Mas só reagir é exaustivo. Como o espaço público está saturado de gritos, a reação se esgota em si mesma. Numa época em que se vive de espasmo em espasmo, cada vez mais rápidos, o que parece movimento com frequência é paralisia. A paralisia do tempo da velocidade cria a ilusão de movimento exatamente porque é feita de espasmos. Como parar de apenas reagir e se mover com consistência, estratégia e propósito?
Quero propor uma conversa. Ou talvez duas. A esquerda foi demonizada pela turma do Bolsonaro, do MBL (Movimento Brasil Livre), do Olavo de Carvalho e outras. Para uma parte da população, virou tudo o que não presta, seja lá o que for. Às vezes esquerda e comunismo e marxismo viram uma coisa só no discurso repetitivo e feito para a repetição. E essa coisa que viram pode ser qualquer coisa que alguém diz que é ruim. A reação daqueles que se identificam com a esquerda é acusar os que estimulam esse desentendimento, aqui no sentido de não entender mesmo do que tratam os conceitos, de manipuladores e de desonestos. E com frequência é isso mesmo que são. Mas se fosse só isso seria mais fácil.
O problema é que está muito difícil saber o que a esquerda é. E o que a esquerda propõe que seja claramente diferente da direita. O PT se corrompeu no poder. É um fato. Pode se discutir bastante se o PT é um partido de esquerda. Eu, pessoalmente, acho que foi de esquerda só até a Carta ao Povo Brasileiro, durante a campanha de 2002. Outros encontram marcos anteriores de rompimento com um ideário de esquerda.
• Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana
Para o senso comum, porém, o PT é um partido de esquerda. Não só é como foi a principal experiência de um partido de esquerda no poder da história da democracia brasileira. Logo, não se corromper no poder, fazer diferente da velha política conservadora, já não é uma diferença da esquerda para a população. Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante — ou mau caráter — quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana.
Garantir o emprego e os direitos trabalhistas poderia ser uma outra diferença visível, mas o desemprego voltou a crescer e os direitos do trabalhador começaram a ser cortados já no governo de Dilma Rousseff, a última experiência que a população teve de um governo de esquerda. A reforma agrária poderia ser outra diferença, mas ela não avançou de forma significativa no governo de esquerda. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que hoje está sendo criminalizado pelo governo de extrema direita, se domesticou quando o PT estava no poder. O mesmo aconteceu com grande parte dos movimentos sociais, que viraram governo em vez de continuar sendo movimentos sociais, o que teria sido importante para garantir a vocação de esquerda do partido no poder. Esta, aliás, é uma história que precisa ser melhor contada.
Também nos governos do PT foram fortalecidos os laços com a bancada ruralista, que foi ganhando cada vez mais influência no cotidiano do poder, e se iniciou um claro projeto de desmantelamento da Funai (Fundação Nacional do Índio). Não é permitido esquecer nenhuma palavra de Gleisi Hoffmann atacando a Funai, quando era ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff, assim como não é permitido esquecer nenhuma palavra da ruralista Kátia Abreu, ministra da Agricultura de Dilma, sobre as terras indígenas.
Não custa lembrar que, segundo a Constituição de 1988, as terras indígenas são públicas, de domínio da União, mas de usufruto exclusivo dos indígenas. Toda a articulação para enfraquecer a Funai, até hoje, entre outras várias ações, tem por objetivo mudar a Constituição e abrir as terras indígenas para exploração e lucros privados.
Lula chegou a dizer, em 2006, que os ambientalistas, os indígenas, os quilombolas e o Ministério Público eram entraves para o crescimento do país. Dilma foi a presidente que menos demarcou terras indígenas. A lei antiterrorista, que pode ser piorada e usada para criminalizar ativistas e movimentos sociais no governo de Bolsonaro, foi sancionada por ela.
Nenhuma dessas ações e omissões podem ser relacionadas com um ideário de esquerda, pelo menos de uma esquerda que mereça esse nome.