segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Cida Damasco: No rastro da lama

- O Estado de S.Paulo

Desastre de Brumadinho deve frear tentativas de afrouxar leis ambientais

São dezenas de mortos, centenas de desaparecidos, inúmeras dúvidas e ilações, e uma única certeza. A tragédia de Brumadinho escancara o quanto o Brasil está despreparado para um ciclo de crescimento com responsabilidade social, que deve ser o objetivo de qualquer país que se preze. Nem bem Minas e o País se distanciaram da tragédia de Mariana, ocorrida em 2015, e as mesmas cenas se repetem à vista de todo mundo.

Num “déjà vu” desanimador, a mesma Vale insiste nas mesmas explicações inaceitáveis. As mesmas autoridades prometem identificar e punir os culpados o mais rápido possível, além de tomar providências para evitar que novos acidentes aconteçam – controles, fiscalizações, auditorias e assim por diante. Muitas delas, inclusive, que fizeram vistas grossas à demora da Vale em assumir suas responsabilidades no caso de Mariana e, mais ainda, à expansão da produção da empresa em Minas, apesar dos riscos apontados por especialistas.

Além disso, no clima de guerra política que atravessou a campanha eleitoral e persiste no início do mandato de Bolsonaro, cada lado tenta buscar culpados entre seus opositores, numa simplificação quase infantil do problema. Nas redes sociais, sobram ataques, por exemplo, à privatização da empresa na gestão FHC, como se o Estado brasileiro, em todas as suas esferas, cuidasse bem de seu patrimônio. Estão aí, para quem quiser ver, os exemplos de obras públicas deterioradas nas grandes cidades, como os viadutos e pontes de São Paulo, e um sem número de outras inacabadas, que apodrecem antes de serem concluídas.

De mais prático, por enquanto, a pressão financeira sobre a empresa, via bloqueio de R$ 11 bilhões pela Justiça e multa de R$ 250 milhões pelo Ibama. A pergunta que não quer calar, contudo, é a seguinte: a Vale é um caso único, uma exceção num ambiente de empresas “socialmente corretas” e de Estado atuante? Infelizmente a resposta é não, por mais que se reconheça seu poder, como terceira empresa listada em Bolsa e segunda maior mineradora do mundo.

No universo das empresas, claro que se observa um aumento nas preocupações com sustentabilidade – até porque a inserção no mercado internacional cada vez mais impõe práticas de responsabilidade social. Mas é inegável que ainda estamos muito longe de padrões civilizados nesse quesito. Na prática, muito marketing, muitos relatórios, e ações efetivas insuficientes.

No setor público, não se pode dizer que a legislação existente seja fraca, mas sua aplicação deixa a desejar, com as chamadas manobras protelatórias, para dizer o mínimo. Mais preocupante é a ameaça de que os esforços para acelerar o crescimento atropelem o cumprimento das normas atuais ou, pior ainda, levem a seu abrandamento. Quem nunca ouviu empresários e líderes setoriais apontando as regras ambientais como um dos principais obstáculos aos investimentos?

A atividade econômica ainda caminha em ritmo lento, saindo de um crescimento do PIB abaixo de 1,5% em 2018 para uma taxa nas vizinhanças de 2,5% em 2019. E, segundo a maioria dos diagnósticos, é necessário um “arrastão” em busca de investimentos do setor privado, para encorpar esse crescimento. Daí a tentação de flexibilizar controles ambientais, para destravar principalmente obras de infraestrutura.

Nesse quadro, o raciocínio acaba sendo inverso ao que deveria ser. Se há leis razoavelmente rígidas e elas não estão funcionando, vamos afrouxá-las. Quando o correto seria eliminar, sim, burocracias desnecessárias – principalmente aquelas dificuldades criadas para vender facilidades, tão comuns por aqui –, mas tapar brechas e fortalecer órgãos de controle, para garantir que as leis funcionem. Só como exemplo, mais de 70% de 790 barragens de rejeitos no País não foram fiscalizadas pela Agência Nacional de Mineração, mesmo depois do desastre de Mariana. Sem contar o persistente encolhimento dos orçamentos do Meio Ambiente e a estrutura indigente do Ibama.

Os malabarismos ensaiados para encaixar o Meio Ambiente no ministério de Bolsonaro já mostram claramente a prioridade que se dá a esse tema no País. Não é por acaso que circularam e continuam a circular pelo Congresso vários projetos com o objetivo de afrouxar os controles ambientais. O novo presidente do Ibama, Eduardo Bim, por exemplo, já havia se manifestado a favor do licenciamento automático para o agronegócio. E o novo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defende uma espécie de “autodeclaração” das próprias empresas para a liberação de algumas obras.

Claríssimo que, sob o impacto de Brumadinho, todos pensarão duas vezes antes de encaminhar propostas nessa direção. Pelo menos até que Brumadinho e Mariana sejam jogados para o canto da memória.

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