sexta-feira, 29 de março de 2019

Maria Cristina Fernandes: A espiral autocrática da geração Bretas

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Quando o juiz Marcelo Bretas apareceu no noticiário como titular da ação penal do caso Eletronuclear, em 2015, parecia dar vazão à ideia de que Sérgio Moro não era um ponto fora da curva. A prisão - e soltura - do ex-presidente Michel Temer mostraram que a segunda geração de juízes pós-Constituinte ameaça colocar o Judiciário numa espiral autocrática.

O atual ministro da Justiça tornou-se juiz em 1996, aos 26 anos, debruçando-se, desde o início de sua carreira, em casos de corrupção e lavagem de dinheiro a partir do caso Banestado. Apesar de dois anos mais velho, Bretas estreou na magistratura um ano depois de Moro. Passou 15 anos em varas no interior do Estado até ser lotado na 7ª Vara da Justiça Federal no Rio, onde, oito meses depois, recebeu a fatia da Lava-Jato desmembrada pelo então relator do caso no Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki.

Quando a Constituição foi promulgada, em 1988, nenhum dos dois havia entrado na faculdade. Iniciaram seus estudos jurídicos quando a primeira geração de magistrados protagonizou os novos poderes outorgados pela Carta na proteção e na garantia dos novos direitos conferidos pelo texto que redemocratizou o país. Ambos passaram no concurso para a Justiça Federal no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, às vésperas da aprovação da emenda da reeleição pelo Congresso.

Ainda não eram juízes quando, em 1995, a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) promoveu o primeiro grande levantamento sobre o perfil da corporação, tarefa confiada a um grupo de pesquisadores liderado pelo professor Luiz Werneck Vianna, um dos principais estudiosos do Judiciário no país. Mas ambos ainda estavam na magistratura quando Werneck, Maria Alice Carvalho e Marcelo Burgos voltaram à rua no ano passado para uma nova rodada de perguntas patrocinada pela mesma entidade.

Ambas as enquetes tiveram a participação de quase quatro mil juízes e um questionário de quase 200 questões. Nelas, está o retrato da evolução do ativismo judicial pós-Constituinte. Uma primeira geração de magistrados, mais antenada em garantir acesso à saúde, educação e liberdade de expressão, abriu espaço para uma outra, voltada, prioritariamente, ao exercício do poder e seus desvios. A mudança, ainda que pincelada em nuances da pesquisa, mostra uma geração mais autorreferente no julgamento sobre o que é o bem comum.

Os resultados desta pesquisa mostram que Moro e Bretas estão na mediana de sua geração de juízes, como já sugerira o apoio que reiteradamente recebem das entidades de classe. Mais da metade dos magistrados, em todas as instâncias, demonstraram concordar que o Judiciário, em menor ou maior grau, pode ser criativo na produção de normas, "a fim de atender os anseios da coletividade".

Indagados se, em "temas sensíveis" para a sociedade sobre os quais não se constituiu uma maioria parlamentar, os magistrados podem interpretar criativamente as leis, desde que se guiem pelo "ideal de bem comum", o grau de concordância ultrapassa com folga a maioria, chegando a 80% entre os togados de tribunais superiores. Na pesquisa da geração passada, a adesão à criatividade dos juízes não ultrapassava um terço da amostra entre juízes de primeiro e segundo graus.

Não por coincidência, Luis Roberto Barroso, autor da tese de que cabe a um Judiciário iluminista a missão de "empurrar a história", aparece como um dos juristas mais citados pelos entrevistados. Na primeira instância, o ministro do Supremo Tribunal Federal vem em segundo lugar, depois de Pontes de Miranda, e com mais citações do que Ruy Barbosa. Entre os togados do STF, só Luiz Fux lhe faz companhia na lista, ainda assim com um terço de suas citações.

Se Moro havia abusado da criatividade ao autorizar o grampo e a divulgação de conversa telefônica de uma presidente da República, Bretas não ficou para trás. Fiou-se numa tentativa de depósito na conta de um suposto operador de Temer que não chegou a se efetivar para autorizar prisão preventiva não prevista em lei. O controverso perfil do desembargador que reverteu sua decisão não poderia ser mais ilustrativo dos extremos do embate com a geração pré-Constituinte.

A prevalência do combate à corrupção identificada pela pesquisa como prioridade do Judiciário se deu paralelamente à consolidação de uma magistratura mais aproximada do perfil da classe média brasileira, como Moro, filho de um casal de professores de Maringá (PR), e Bretas, egresso de uma família de comerciantes da Baixada Fluminense.

Mais da metade de pais e mães dos juízes de 1º e 2º graus têm curso superior completo. Na pesquisa anterior, este era o perfil de um em cada três togados. A amostra revelou uma atuação mitigada na garantia de direitos sociais de uma geração com menor representatividade feminina (34%) numa corporação que já chegou a ter 41% de mulheres.

Além de homens de origem mais elitizada, os juízes são também mais velhos. Se a pesquisa anterior tinha apenas 13% de sua amostra entre magistrados com menos de 30 anos, nesta o percentual caiu para 2%. Em meados da década de 1990, metade dos juízes tinha menos de 40 anos. Hoje, um terço está nessa faixa etária. São os juízes de primeiro grau e, portanto, os mais jovens da amostra, que, na mais nova edição da pesquisa, aparecem como os únicos a darem pouca importância à tese de que o acesso à Justiça, por oneroso, leva a uma seleção social de seus beneficiários.

Convidados a indicar as três áreas mais importantes de atuação do Judiciário em uma democracia, a única comum aos quatro segmentos em que a pesquisa é divididida (1ª instância, 2ª instância, tribunais superiores e inativos) é o controle da probidade administrativa interna e externa. A defesa da ordem pública vem em segundo lugar, mas não é citada na tríade elencada pelos ministros de tribunais superiores, que optam pela "defesa dos direitos humanos e controle da violência estatal" na sua lista tríplice de prioridades.

Professor do Insper e pesquisador vigilante das tendências do Judiciário, Diego Arguelhes aposta que o ativismo da geração de Moro e Bretas ainda está longe de se esgotar. Vê os primeiros sinais de contestação ao padrão estabelecido pela Lava-Jato surgirem na produção dos centros acadêmicos, onde são formados os juízes. Calcula, no entanto, que essa contestação, se consistente, só venha a se refletir no padrão de comportamento da magistratura daqui a, pelo menos, dez anos.

Nas duas pontas da amostra da pesquisa, o 1ºgrau e os tribunais superiores, está a maior crítica ao ativismo dos magistrados nos meios de comunicação. Por larga maioria, em todas as instâncias, os juízes concordam que o trabalho da imprensa contribui para a transparência do Judiciário. A maioria dos juízes diz se valer de redes sociais para se informar.

Quando autorizou a prisão de Sérgio Cabral, em 2016, Bretas ainda se mantinha à sombra de Moro, a quem sempre tratou de forma reverente. Mantinha-se longe da imprensa, a quem atendia informalmente antes das audiências, evitando entrevistas. Começou a mudar quando, no fim de 2017, em seu primeiro embate com o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, foi homenageado por um grupo de artistas liderado por Caetano Veloso.

O ato animou-o a entrar nas redes sociais. O juiz deixou a discrição definitivamente de fora, porém, com a ascensão do bolsonarismo. Aplaudiu com um emoji a convocação feita pelo presidente eleito para sua posse e escancarou suas simpatias pelo governador do Rio, Wilson Witzel - "Que Deus o oriente e abençoe", escreveu.

Em suas postagens, usa filosofia de algibeira ("A coragem conduz às estrelas, o medo à morte", Sêneca), frases de empreendedores de sucesso ("Todo mundo quer, obviamente, ser bem-sucedido, mas eu quero ser visto como inovador, muito confiável e ético e, finalmente, fazer uma grande diferença no mundo", Sergey Brin, cofundador do Google) e de livros de autoajuda ("Às vezes, tudo o que você precisa fazer é abaixar sua cabeça, orar a Deus e resistir").

No dia em que se tornou o segundo juiz da história a mandar prender um ex-presidente, valeu-se de um salmo bíblico ("Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam"). No dia seguinte à soltura de Temer, desejou bom dia aos "brasileiros de bem" com um parachoque de caminhão: "O silêncio é a única resposta que devemos dar aos tolos, porque onde a ignorância fala, a inteligência não dá palpites". Nenhum artigo da Constituição aparece nos seus 35 tuítes.

O comportamento de Bretas ainda não fez escola. O conjunto dos juízes de sua geração ainda é cauteloso com o uso de redes sociais. A grande maioria se vale delas para se informar e fazer contatos. Na primeira e segunda instâncias, os magistrados que vão às redes para manifestar opiniões não chegam a 10%.

A grande maioria dos juízes ouvidos pela pesquisa acredita que a imprensa ajuda a dar mais transparência aos atos do Judiciário. Pelo menos uma vez, Bretas pareceu agir em dissonância com o entendimento coletivo. Quando se defendeu da divulgação do auxílio-moradia duplo que ele e sua mulher, Simone Dias Bretas, também juíza, recebiam, apesar de residentes na mesma casa.

A concordância dos magistrados foi minoritária quando perguntados se o Judiciário deve se atribuir "um papel ético-moral na sociedade, educando-a para a vida pública e a cidadania". Não é papel de juiz, nem tinha como ser. Mais de 70% dos juízes de primeira instância moram em casa própria, percentual que ultrapassa os 90% nas instâncias superiores. A despeito disso, foram todos beneficiados pela medida que, no fim do ano passado, incorporou o auxílio-moradia aos seus honorários.

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