segunda-feira, 29 de julho de 2019

'Presidentes pós-88 não atacaram direitos civis como Bolsonaro'

Malu Delgado | Valor Econômico

SÃO PAULO - O governo Bolsonaro interrompe um projeto paulatino de construção da cidadania civil e de valorização dos direitos humanos introduzido após a Constituição de 1988. E essa será a pior herança da atual administração, avalia o historiador Carlos Fico, professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em ditadura militar brasileira. Ao atacar os direitos humanos e fazer proselitismo e apologia da violência, afirma Fico, o presidente Jair Bolsonaro se distingue de todos os presidentes anteriores desde José Sarney.

"Independentemente do que houve de problemas nos governos posteriores à Constituição de 88, com [José] Sarney, [Fernando] Collor, os governos do PSDB e do PT, nunca houve espaço, ainda mais a partir do próprio presidente da República, para a contestação dos direitos civis." Esse aspecto, salienta o professor, ainda pouco identificado e explorado, é muito mais grave e complexo do que afirmações autoritários e estapafúrdias de Bolsonaro.

O historiador considera que contra as "declarações amalucadas" do presidente há recursos de contraposição na esfera institucional, mas já seu comportamento cria simbolismos que afetam a prática cotidiana social num país com um grave histórico de autoritarismo.

"Diz respeito a uma dimensão institucional que está ali na ponta da sociedade. Não adianta só ter lei e Constituição. É preciso que as coisas mudem também no cotidiano, quer dizer, como a polícia trata alguém, como nós tratamos um empregado doméstico, como a gente lida com as diferenças que configuram uma sociedade, se você pode ter acesso à Justiça ou não. Claro que existem leis sobre isso tudo, mas isso diz respeito ao autoritarismo socialmente existente e à mudança de comportamento das pessoas. E os governos posteriores a 1988 valorizaram essas questões", explica Carlos Fico.

Não se trata, segundo o professor, de analisar se um governo foi mais ou menos corrupto que outro: 

"Até porque todos tiveram problemas com corrupção, Sarney, Collor, Fernando Henrique, Lula Dilma. Mas nenhum deles valorizou a violência ou desprezou os direitos humanos".

Nas últimas semanas, Bolsonaro criticou estatísticas oficiais, levantou dúvidas sobre os dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) em relação ao desmatamento - considerado o melhor sistema de monitoramento do mundo -, prometeu extinguir a Ancine (Agência Nacional do Cinema) e disparou contra agências reguladoras.

Ainda que governos militares no Brasil tenham manipulado dados e estatísticas oficiais, pontua Fico, não há paralelismos possíveis entre o governo atual com a ditadura. "Tem até um certo ineditismo no governo Bolsonaro em relação a essa contestação da realidade." O presidente, acrescenta o historiador,

"Isso tem muito a ver com o presidente em si, que é uma pessoa bastante despreparada, com um perfil de ressentimento. Frequentemente ele me lembra uma atitude infantil ou juvenil, aquele adolescente problemático que mesmo diante de uma evidência irrefutável diz 'não, é isso sim'. O que estamos vivendo hoje tem muito a ver com o perfil do presidente e alguns de seus assessores e ministros, mas não todos. É um momento muito ruim."

Segundo o historiador, "as tolices são tantas" que o presidente é obrigado a recuar e a perceber que "é impossível alterar a realidade refutando dados. "Essas coisas não terão como prevalecer. Por exemplo: os dados do desmatamento da Amazônia. São evidências empíricas. É a mesma questão da fome." Bolsonaro afirmou na semana passada, em café da manhã com jornalistas, que é mentiroso o discurso da fome. "Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não. Você não vê gente pobre pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países por aí pelo mundo", disse o presidente.

Carlos Fico acredita que a moldura institucional do Brasil vai impor limites de ação ao presidente. "São duas dimensões evidentes neste governo: o autoritarismo e a falta de preparo. Muitos nem sabem o que estão fazendo. Então vai ser uma bagunça tremenda na administração pública, uma luta constante na Justiça", prevê.

Esse embate judicial será uma constante para tentar conter excessos autoritários da Presidência. "Ele fala que vai fechar, mas não vai, porque as coisas têm estrutura legal. Diz que vai fazer censura. Não vai, porque o Supremo vai impedir. A tudo isso é possivel se contrapor, mas vai dar muito trabalho. É resultado do fato que o eleitorado brasileiro escolheu para presidente da República um homem autoritário e despreparado."

O professor diz não se surpreender com declarações de Bolsonaro. "Já eram esperadas. Ele sempre foi assim, uma pessoa ressentida, temerosa, na defensiva, e violento e autoritário. É possível de alguma maneira controlar em termos da afetação da administração pública mais ampla. O prejuízo que eu temo é a interrupção da pedagogia de constituição da cidadania civil."

A interrupção desta pedagogia já é perceptível "na ponta". O professor cita como exemplo o fato de policiais rodoviários terem buscado informações sobre manifestações contra o presidente organizadas por sindicalistas do setor da educação, no Amazonas. Atitudes descabidas como essa, pondera, são endossadas e estimuladas pelo presidente. "Isso é claro como água."

Essa pedagogia da cidadania civil, sustenta o historiador, deveria ser preservada sobretudo porque o Brasil é uma sociedade "muito violenta e conservadora". "Sim, brasileiros em geral, até por uma série de limitações de educação formal e pela trajetória histórica, são muito violentos e alheios à cidadania civil. Essa pedagogia era fundamental que persistisse, mas esse governo que ataca os direitos humanos e faz apologia da violência interrompeu esse processo", enfatiza. Bolsonaro disparou um gatilho na sociedade cujas consequências não se poderá contar, conclui.

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