sexta-feira, 2 de agosto de 2019

José de Souza Martins*: A tragédia do povo waiãpi

- Eu &Fim de Semana / Valor Econômico

Índios têm direito da posse sobre suas terras ancestrais, reconhecido na Constituição. A concepção de utilidade perfilhada pelo governo é a da posse meramente lucrativa

No rol dos fatos politicamente graves que têm ocorrido no Brasil nos últimos meses, inclui-se, agora, o da invasão do território ancestral dos índios waiãpi, nossos compatriotas do Amapá, e o assassinato, pelos invasores, do seu cacique, Emyra Waiãpi, da aldeia Waseity.

As autoridades foram avisadas, mas reagiram mais devagar do que deveriam. Foram para negociar com os garimpeiros, e não, prioritariamente, para evacuá-los da casa e da terra alheia e processá-los pelo homicídio.

Os índios haviam avisado que uma das aldeias fora invadida e ocupada por um grupo de garimpeiros. Mineração irregular em terra vedada aos estranhos, seja porque patrimônio dos índios, seja porque os indígenas estão, por lei, sob proteção do Estado brasileiro.

Apesar dos esforços de funcionários dedicados ao dever funcional na proteção a essas populações frágeis, há muitas indicações de que o Estado brasileiro está se tornando lento na proteção constitucional às nossas populações indígenas.

Agora mesmo, em relação à situação dos waiãpi, o presidente da República declarou que "não tem nenhum indício forte de que esse índio foi assassinado lá". Contemporiza. E retornou ao teor de suas declarações de que vai regulamentar o garimpo em terra dos índios. Permitirá que os próprios índios se tornem garimpeiros, isto é, brancos de uma economia violenta e predatória.

Vai liberar as terras indígenas para a garimpagem de não indígenas. Declarou: "Terra indígena é como se fosse propriedade dele. Lógico, ONGs de outros países não querem, querem que o índio continue preso num zoológico animal, como se fosse um ser humano pré-histórico". E esclareceu, diz a "Folha de S. Paulo", que a demarcação de territórios indígenas "está inviabilizando nosso negócio. O Brasil vive de commodities".

O presidente, porque desinformado, comete vários erros nas simplificações que faz em suas falas a respeito das populações indígenas. Assim como o Brasil não é propriedade de ninguém, não pode ser vendido nem comprado, terra indígena não é como se fosse "propriedade deles". Não é propriedade. É território dos índios sob domínio do Estado brasileiro, insuscetível de sujeição ao direito de propriedade.

É nesse sentido que os índios têm o direito da posse útil sobre suas terras ancestrais, reconhecido na Constituição. A concepção de utilidade perfilhada pelo presidente e por seu governo é a da posse meramente lucrativa. Uma concepção antropologicamente equivocada. A terra dos índios é para usar. A terra da concepção do presidente e de quem pensa como ele é para consumir. A pátria que sobrar dessa orientação política, para todos nós, será uma pátria gasta.

Nem tudo o que é lucrativo é útil, na perspectiva do dispositivo constitucional da função social da propriedade. A concepção de propriedade que o presidente defende para os territórios indígenas é, sociologicamente, predatória porque se opõe à concepção indígena de uso e utilidade. Para os índios, seus territórios são revestidos de sacralidade, são plurifuncionais, terra de devoção, de indústria extrativa, de agricultura, farmácia, tudo ao mesmo tempo, mediação de seres humanos integrais.

O mundo indígena não é um zoológico nem na pré-história. Essa é uma afirmação preconceituosa. O cosmo indígena é complexo, culturalmente muito mais rico e muito mais significativo sobre a condição humana do que os geometricamente corretos e antropologicamente incorretos palácios de Brasília. Os ocupados pelos que não enxergam nem compreendem que são meros agentes da desumanização do povo brasileiro, sua escravização pela conversão à condição de coisa, medido pela equivalência do dinheiro.

Pretendendo salvar os índios de um suposto atraso, o governo quer forçá-los a ser economicamente brancos e culturalmente da brancura subalterna que a sociedade brasileira tem proposto aos nossos nativos. Vítimas da extorsão e do saque, como neste caso de agora, que vitima os waiãpi. O antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), pesquisador e autor de obras referenciais sobre as populações indígenas brasileiras, constatou e disse que o branco do contato com os índios do país é o pior tipo de gente porque destituída da humanidade que nos diferencia dos animais selvagens.

A antropóloga Aracy Lopes da Silva, estudiosa da nação xavante, em cuja aldeia viveu e cuja língua falava, constatou que os índios tiveram dificuldades para classificar os brancos que disseminaram entre eles doenças contagiosas e mortais. Deram-lhes roupas propositalmente contaminadas com varíola, desencadeando numerosas mortes. Eram gente ou eram bichos? Acabaram concluindo que os brancos não são humanos e os situaram entre as onças, o animal que mata por matar.

*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).

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