sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Maria Cristina Fernandes: O júri que foi escada para o cadete infrator

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Nos corredores do estúdio onde seria gravada a entrevista para o "Jornal Nacional", durante a campanha presidencial, o então candidato do PSL contou ter encontrado, num aeroporto, Cássia Maria Rodrigues. A jornalista escrevera a reportagem da "Veja" sobre os planos do capitão Jair Bolsonaro de explodir bombas na adutora do Guandu, responsável pelo abastecimento do Rio de Janeiro, na Academia Militar das Agulhas Negras e em vários quartéis. "Deputado, sou a Cassia, aquela repórter de 'Veja' que denunciou o senhor'. Eu disse para ela: 'Que denunciou que nada! Você me catapultou para a política!'"

Semanas antes do encontro com a jornalista, Bolsonaro ficara 15 dias em prisão disciplinar por ter assinado artigo, também na "Veja", sob o título "O salário está baixo". Como fora insuficiente para arrancar do então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, e do presidente José Sarney um reajuste mais robusto, o capitão radicalizou a estratégia e decidiu e revelá-la à repórter. A conversa tivera o compromisso de sigilo da fonte, mas ante a gravidade dos planos anunciados, a publicação resolvera dar à reportagem o tom de denúncia.

A história, contada no livro de Luiz Maklouf Carvalho, "O Cadete e o Capitão" (Todavia, 2019), revela engrenagens, até então desconhecidas, do julgamento no Superior Tribunal Militar que inocentou Bolsonaro por nove votos a quatro. Passaram-se 31 anos, mas a reconstituição feita pelo jornalista dos liames entre caserna, toga, imprensa e política é de assustadora contemporaneidade com o Brasil da #Vazajato.

A começar pelas manipulações do julgamento. O eixo do veredito foi um suposto empate entre quatro laudos periciais sobre croquis feitos por Bolsonaro para mostrar à repórter como seriam detonadas as bombas na adutora. Em caso de dúvida, beneficia-se o réu, diz o preceito jurídico, mas o livro revela que, na verdade, não houve empate.

A dois laudos inconclusivos do Exército, somou-se um outro da Polícia Federal, taxativo, sobre a autoria dos desenhos. Depois deste terceiro laudo, foi pedida uma complementação da segunda perícia do Exército, que concluiu pela autoria de Bolsonaro. Havia, portanto, três laudos, dois dos quais associavam o capitão aos croquis.

Quem conduziu a tese de que se tratava de quatro laudos foi o réu, que fez, de próprio punho, sua defesa no Superior Tribunal Militar, instância à qual o processo fora enviado depois que o Conselho de Justificação do Exército, por três votos a zero, o condenara. A autodefesa rememora episódios de heroísmo como aquele em que salvara um sargento negro de afogamento durante uma instrução militar e deixa claro que nascia ali uma carreira política.

Na instância anterior se fizera representar por dois escritórios de advocacia. No tribunal, mudou, além da tese, a roupagem da defesa: "Além de oneroso para minhas condições financeiras, entende desnecessário comprovar-me juridicamente honrado. Sou, de fato, honrado, por todos os atos que pratiquei, como soldado e cidadão. Para enunciá-los, ninguém melhor do que eu próprio".

O germe da política, na verdade, já se mostrara desde o artigo que precedeu o planejamento das bombas. O capitão antecipou ali o slogan que, mais de três décadas depois, embalaria sua vitória na disputa pelo Palácio do Planalto. "Brasil acima de tudo", concluía o texto.

Nas 26 páginas de sua defesa, entregue ao STM, o capitão, que depois ficaria conhecido no Brasil inteiro pela frequência com a qual recita o versículo bíblico "conheceis a verdade e a verdade vos libertará" (8:32), admitiu encontros com a repórter antes negados, relativizou a mudança de versão e se fixou na tese de empate dos laudos: "Mesmo admitindo que houvesse mentira, como tenta insinuar o libelo acusatório, o fato de 'faltar a verdade' não incapacita ninguém para o oficialato".

A jornalista que o candidato acabaria por admitir ter-lhe propiciado notoriedade para a política seria tratada por um dos ministros do tribunal como "perigosa". Foi o mesmo adjetivo utilizado para enquadrar alvos de deportação na portaria 666, editada pelo ministro Sérgio Moro em meio à revelação, pelo jornalista americano Glenn Greenwald, de mensagens entre o então juiz da Lava-Jato e o procurador Deltan Dellagnol.

Dos 15 ministros do tribunal que julgou Bolsonaro, 13 compareceram, oito militares e cinco civis. Entre aqueles que participaram do julgamento, oito haviam sido nomeados durante a ditadura. Ante o voto de um dos civis indicados por Sarney, José Luiz Clerot, o almirante de esquadra Roberto Cavalcanti completaria a frase anunciada na defesa de Bolsonaro e que três décadas depois lhe inspiraria a campanha presidencial: "Deus salve o Brasil".

Em seu voto, Clerot, que servira como oficial de gabinete do presidente deposto João Goulart, desmascarou a tese dos quatro laudos, defendeu a imprensa e denunciou a indisciplina militar do capitão: "Nunca, nem antes de 1964, se não me falha a memória, um capitão teve a coragem de afrontar um chefe militar como se afrontou".

Antes de planejar explodir uma adutora na segunda maior cidade do país, o capitão havia acumulado em sua carreira no Exército afrontas à hierarquia militar nem sempre punidas. Maklouf cita passagem do livro do filho mais velho do presidente da República, o senador Flávio Bolsonaro ("Mito ou Verdade", Altadena, 2017), em que o então cadete teria enfrentado um major que queria impedi-lo de fazer o curso de paraquedismo.

Um coronel dentista sugeriu sua reprovação por causa de uma cárie. O cadete teria feito uma obturação de emergência para nova avaliação médica e, na hora da escolha, o major responsável disse que ele ficara de fora por ter sido reprovado no exame odontológico. Ante uma acareação com o coronel dentista que confirmou a reprovação, e diante do major e do coronel responsável pelo Corpo de Cadetes, Bolsonaro, segundo seu filho, teria dito: "O senhor está mentindo coronel".

A afronta pública a um superior hierárquico não apenas não foi punida como não o impediu de ser incorporado ao curso de paraquedismo da Aman. O cadete tampouco foi punido quando, internado em função de um acidente de paraquedas, foi colocado, segundo Flávio, numa ala de aidéticos, o que afugentava as visitas. Um major amigo que foi visitá-lo atendeu suas súplicas e o teria tirado dali nas costas. A evasão do hospital, transgressão ao Regulamento Disciplinar do Exército, gravíssima, segundo Maklouf, tampouco foi punida. Bolsonaro voltaria ao hospital para ser operado.

A decisão de incorporar os relatos, mais que autorizados, à biografia, lançada no início da campanha de Flávio ao Senado, mostra de que maneira a família valora a representação de injustiçados, ainda que em afronta às instituições, como parte de seu ethos político. Ao contrário do que acontece com a maioria de seus eleitores, o Bolsonaro da biografia oficial não apenas não é punido como ainda é recompensado por suas transgressões.

Além da indisciplina, seus superiores hierárquicos também fizeram vista grossa a bicos que o capitão fez ao longo de sua permanência para complementar o soldo militar. As idas repetidas ao comércio de Ciudad del Este, na época em que serviu em Nioaque (MT), ficaram restritas a relatório do SNI, mas foi sua incursão, em férias, pelo garimpo, na Bahia, que chegou mais perto de ser repreendida.

Seu superior hierárquico anotou na sua ficha "excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente". A anotação, único tom dissonante em sua ficha de serviços até a detenção pelo artigo em "Veja", acabaria por contribuir para os 3 x 0 desfavoráveis ao capitão no Conselho de Justificação, mas foi desconsiderada pelo STM.

O presidente da República hoje dá sinais de que pretende descumprir a tradição, adotada a partir de 2003, de pinçar um dos nomes da lista tríplice do Ministério Público para a Procuradoria-Geral da República. A disposição é alimentada pelo processo que envolve as mesadas no gabinete de Flávio Bolsonaro, acusado de herdar a ambição financeira do pai. A desconfiança, porém, vem de longe.

Na peça de acusação, o representante do Ministério Público Militar não chegou a entrar na querela que envolvia a perícia dos laudos. Milton Menezes da Costa Filho foi implacável, porém, ao advogar pela perda do posto e da patente do capitão: "Como se apresentar um oficial perante seus subordinados, arrastando um passado com um episódio tornado público, tão comprometedor?" A sustentação oral do procurador, que não era obrigatória no regimento da época, foi negada pelos ministros do STM.

A de Bolsonaro lhe seria franqueada, mas o capitão, que inicialmente alegara insuficiência de recursos para sua contratação, a delegaria à advogada Elizabeth Souto. O capitão que, três décadas depois, na condição de presidente da República, gozaria do filho órfão de um militante morto pela ditadura, foi representado num julgamento que o catapultou para a política por uma advogada que defendia presos políticos.

Depois de percorrer toda a documentação do julgamento, Maklouf conclui que seu resultado decorreu de jogo combinado para inocentá-lo desde que ele apressasse sua saída do Exército, o que acabaria ocorrendo seis meses depois, quando elegeu-se vereador no Rio. A tese poderia ter sido reforçada se alguns personagens-chave da história não tivessem se recusado a falar com o autor - dos Bolsonaro aos três oficiais que, no Conselho de Justificação, votaram por sua punição.

O ápice da carreira de Bolsonaro, no entanto, acabaria por se tornar o principal pilar da tese de que um cadete insubordinado não vira comandante em chefe sem a complacência de seus superiores.

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