sexta-feira, 27 de setembro de 2019

José de Souza Martins* - O neossimbolismo do poder

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Uma das fotos do presidente e coadjuvantes no Dia da Pátria confirma a desvalorização dos símbolos para acentuar pessoas

Para as ciências humanas, este é um momento peculiar de revelações do que somos como povo e como sociedade. As mudanças sociais e políticas que ocorreram nos últimos meses nos mostraram o que de nós não víamos.

Nossos impasses, insuficiências e esperanças aparecem no banal do dia a dia. A pátria simbólica está na composição de uma foto e na escolha política da distribuição de quem e como nela aparece. Caso do retrato de figurões no desfile do Dia da Pátria. Ele revela o que são, e não sabem, os fotografados que personificam as instituições. Os escolhidos a dedo para ladear o governante tornam-se nele atores do nosso simbolismo milenarista, do tempo em que tínhamos religião e fé. Na mudança dessa composição, na sucessão histórica dos governos, o poder nos diz o que vem a deixar de ser e o que está se tornando.

Na comparação de diferentes episódios de valor social e simbólico equivalentes, maiores são as revelações. A foto de Ulysses Guimarães a assinar a Constituição de 1988 com uma prosaica caneta esferográfica, dessas que se compra na rua, destoou significativamente das de outros momentos de igual importância.

A caneta com que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea lhe foi oferecida pelo povo, mediante subscrição pública: era de ouro, prata e pedras preciosas. Também o era a caneta com que o marechal Deodoro assinou o projeto da primeira Constituição republicana.

Descompassos entre os episódios nos falam da decadência dos símbolos e, portanto, de uma deplorável banalização da política, que se tornou falsamente solene, pois barulhenta e vulgar.

Uma das fotos do presidente e coadjuvantes no Dia da Pátria confirma a desvalorização dos símbolos para acentuar pessoas. No centro, o presidente da República, com a faixa presidencial. Ele faz com os polegares gesto de positivo e sorri dirigindo-se especificamente a alguém na multidão. Um gesto vulgar do nosso neopulismo sem estilo porque em desacordo com ritos e formalidades próprios das solenidades do poder democrático.

Fotos e documentários de Getúlio Vargas, no mandato de 1950 a 1954, mostram o governante ciente da formalidade do mando, no populismo teatral de interagir com a massa, sem nela distinguir pessoas. O oposto do caso do governante atual. No direcionamento da saudação, ator de uma concepção estamental da sociedade de desiguais, que o era antes da Independência.

À sua direita está o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus. Desde o Estado Novo, na medida do possível, os governantes evitaram compartilhar a cena de atos públicos com representantes de igrejas e de seitas. Lula rompeu essa regra, mas com algum critério.

Getúlio, referindo-se ao catolicismo, nos anos 1930, e atenuando a separação de Estado e Igreja, inaugurara a concepção de religião da maioria da nação, para violar o preceito republicano e angariar apoio da Igreja Católica à sua ditadura. Mas só eventualmente uma autoridade eclesiástica participava do grupo cênico formado em alguma solenidade.

Nas décadas recentes, igrejas têm aceito a violação da separação constitucional de Estado e religião. Essa promiscuidade nos torna menos democráticos do que devemos, na contaminação do que é cívico e laico pelo que não o é.

À esquerda do presidente está o animador de televisão Sílvio Santos. Salvo engano, é a primeira vez que um ícone dos meios de comunicação de massa é elevado ao palco da mais solene das cerimônias da República. O que reconfigura o desenho simbólico do Estado, inscrevendo na concepção da política e do solene a lógica do espetáculo publicitário, de um símbolo da economia de mercado, o que torna essa lógica uma instituição do poder.

A revelação mais importante dessa fotografia é, pois, a da mudança significativa na composição da trindade simbólica do nosso mando político. Desde o Descobrimento, a Santíssima Trindade é o núcleo de nossa concepção religiosa de poder e destino. Tradição que nos vem de Joaquim de Fiore, monge cistercense do século XII, que anunciou o advento da terceira era, a do Espírito Santo, tempo em que o mundo seria virado de cabeça pra cima.

O país tem vivido, ao longo de sua história, na ansiedade e na expectação dessa hora do primado do Brasil do avesso, tempo da revelação e da revolução, da inversão do mundo da iniquidade, da chegada do tempo da liberdade, da fartura e da alegria. A trindade joaquimita está inscrita na consciência social brasileira há séculos.

Mesmo que o poderoso do centro da imagem nada saiba sobre isso, na fotografia do espetáculo do poder os coadjuvantes são posicionados de modo a evidenciar nele um centro de três pilares simbólicos agora usurpados por uma visão mercantil da história.

*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano (Contexto).

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