sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Eleição de 1989: 30 anos do pleito mais esperado pelos brasileiros

- Ascânio Seleme | O Globo

Foi a mais importante eleição brasileira desde o fim da ditadura. A primeira pelo voto direto depois de 29 anos — e cujo primeiro turno completa 30 anos hoje. O brasileiro estava farto de que outros, poucos, decidissem por ele. Já havia se manifestado contra isso de maneira clara e inequívoca seis anos antes, durante os debates e a votação da emenda Dante de Oliveira, que propunha restaurar a eleição direta já na sucessão do general João Figueiredo, último presidente da ditadura iniciada em 1964. Mais do que a nova “Constituição Cidadã”, promulgada no ano anterior, no coração do brasileiro somente a eleição direta para presidente encerraria de vez a transição para a democracia.

A eleição de Tancredo Neves e José Sarney pelo Colégio Eleitoral foi um espetáculo de cidadania. Apesar de o voto ter sido facultado apenas a 686 pessoas (deputados federais, senadores e representantes dos legislativos estaduais), os brasileiros foram às ruas gritar por Tancredo e festejar sua eleição. Uma catarse nacional. Mas a liga nação-cidadão ainda não estava firmada. Talvez a morte prematura de Tancredo tenha colaborado para a construção de uma má vontade coletiva contra Sarney e o seu governo. O Brasil não havia satisfeito sua fome de democracia.

O país seria finalmente saciado, em dois turnos, nos dias 15 de novembro e 17 de dezembro de 1989. Fernando Collor de Mello foi eleito com 53,03% dos votos contra 46,97% de Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar da grande votação de Lula, o país não estava dividido. A maior parte dos seus votos veio de partidos e eleitores que não queriam Collor e sobretudo do PDT de Leonel Brizola, que chegou em terceiro lugar, colado em Lula. O governo Collor foi um fracasso e acabou em impeachment. Mas este desfecho, de total e exclusiva responsabilidade do primeiro presidente eleito pelo voto direto depois da ditadura, não diminui a importância da reconquista completa da democracia coroada com aquela eleição.

Quem mandava na política
A política brasileira já tinha donos em 1989. Sarney era carta fora do jogo em razão do fracasso econômico de seu governo. O presidente foi um dos homens públicos mais tolerantes da sua geração e, mesmo sendo objeto de repulsa popular e política, deu força à Constituinte, que reduziu o seu mandato em um ano, e ajudou na reconstrução da democracia brasileira. Mas era um presidente fraco. No final do seu mandato, não encontrou candidato para apoiar em sua sucessão. Ninguém queria se associar a ele. O dono da bola era o superdeputado Ulysses Guimarães.

Nos anos que antecederam aquela eleição, Ulysses presidira o seu partido, o PMDB, a Constituinte e a Câmara dos Deputados. Nesta condição, era o substituto eventual de Sarney na Presidência. O homem que já fora batizado de “Senhor Diretas”, por liderar o movimento Diretas Já, também passou a ser conhecido como tri-presidente, diante do poder que exercia na política nacional. Ao seu lado, grandes nomes do PMDB e do recém fundado PSDB, de Mario Covas e Fernando Henrique Cardoso, dominavam o cenário nacional.

De outro lado, os partidos de esquerda eram capitaneados pelo PT de Lula e pelo PDT de Brizola. Também voltaram ao cenário os banidos pela ditadura PCB, PCdoB e PSB. Mais fracos, permaneceram na órbita de “trabalhadores” e trabalhistas. Ao se recusar a assinar a nova Constituição, o PT se transformou no partido dos que queriam mais do que a redemocratização, embora não soubessem expressar bem o que era aquilo. Poderia ter perdido seu espaço político já em 1989, se não superasse o PDT de Brizola por 494 mil votos num universo de 22,8 milhões dados pelos brasileiros aos dois partidos.

Esses homens, os que escreveram a Constituição que restaurou a eleição direta e os que participaram mesmo contrariados desse momento histórico, eram os senhores da hora. Estabeleceram o calendário eleitoral e o formato da primeira eleição presidencial pelo voto direto. Seria uma eleição solteira, sem outros pleitos combinados. O que significaria isso em 1989? Que o presidente eleito governaria com um Congresso que não se elegeria com ele, sem a sua influência (novas bancadas de senadores, deputados federais e estaduais e governadores seriam eleitos em 1990). A eleição solteira também resultaria numa multiplicidade de candidaturas nunca antes e nunca mais vista.

Um elenco estelar
Vinte e três candidatos se inscreveram para a eleição. Um deles, o ex-presidente Jânio Quadros, o último eleito pelo voto direto antes de 1964, desistiu por razões de saúde. Restaram 22.
Todos os grandes nomes da política nacional estavam lá. Ulysses Guimarães, o “Senhor Diretas”, a cara da Constituinte, mas também do PMDB. Aureliano Chaves, o vice do último general presidente, que rompera com ele para eleger Tancredo. Mário Covas, o líder da dissidência do PMDB que fundara o novo PSDB. Paulo Maluf, o candidato polêmico, cujo nome era sinônimo de corrupção, derrotado no Colégio Eleitoral por Tancredo. Roberto Freire, o primeiro candidato comunista depois da redemocratização. Fernando Gabeira, o primeiro candidato verde do Brasil. Ronaldo Caiado, o mais à direita, que representava os ruralistas da temida UDR. Collor, Lula e Brizola, os protagonistas, e uma multidão de nanicos que apareciam como figurantes sem nada a perder.

Com esta multidão disputando a atenção do eleitor, a campanha na TV daquele ano foi a maior de todos os tempos. Duas inserções diárias de duas horas e 30 minutos, uma à tarde e o outra à noite. O tempo era dividido de acordo com o tamanho dos partidos que apoiavam o candidato. Ulysses Guimarães tinha 22 minutos diariamente. Aureliano Chaves, do PFL, aparecia em seguida, com 18 minutos. Depois, Mario Covas, com 13. Collor, Lula e Brizola dispunham de dez minutos cada.

Nove candidatos tinham ridículos 30 segundos para expor suas ideias. Uma delas, Lívia Maria Pio, foi a primeira candidata mulher à Presidência. Entre os nanicos, quem mais marcou foi Enéas Carneiro, do Prona. Ele falava rapidíssimo, apresentava um ponto qualquer da sua plataforma e encerrava com uma frase que pronunciava guturalmente: “Meu nome é Enéas”.

Seria também a primeira campanha eleitoral sem o rigor da Lei Falcão, dispositivo legal inventado pelo ministro da Justiça Armando Falcão, do governo do general Ernesto Geisel, que impunha censura e limites à propaganda eleitoral na TV. Com tempo de televisão em abundância para os principais candidatos, era necessário criar formatos que atraíssem a atenção do eleitor. Surgiram então os primeiros especialistas em marketing dedicados à eleições, os marqueteiros eleitorais.

Caçador de marajás
Dos principais candidatos, dois apresentaram as melhores campanhas de TV, justamente os que foram para o segundo turno. O publicitário Chico Santa Rita foi o coordenador da campanha de Fernando Collor no segundo turno. Ele foi incorporado no meio da corrida eleitoral, com o candidato preocupado com o crescimento de Lula. Foi dele a ideia de levar ao programa de TV a mãe de Lurian, uma filha de Lula fora do casamento. Foi um golpe na candidatura do adversário, até hoje considerado um marco na baixaria eleitoral. Mas ajudou a eleger Collor.

Outro publicitário, Paulo de Tarso Santos, foi o idealizador da “Rede Povo” na campanha de Lula. O programa tentava imitar um telejornal em que os protagonistas eram Lula e o PT. Foi também nessa campanha que o compositor Hilton Acioli criou o maior clássico dos jingles eleitorais, o “Lula lá”. Como marqueteiro não tem ideologia, Paulo de Tarso trabalhou para Fernando Henrique Cardoso na eleição seguinte. Chico Santa Rita mais tarde tentou ser deputado. Candidatou-se pelo PV em São Paulo e teve apenas 9.873 votos, ou 0,05% do total.

A estratégia de Collor, contudo, começou bem antes, quando ainda era governador de Alagoas. Fez uma super jogada de marketing ao demitir funcionários com salários acima do teto no estado graças a processos administrativos, alguns fraudulentos. Abriu o contracheque de centenas de servidores do estado, e logo apareceu na mídia local como o paladino da moralidade. Daí, ao conseguir vender esta pauta para veículos nacionais, como a Veja, que lhe deu uma capa, Collor apresentou-se com uma imagem que ele mesmo criou: “Caçador de marajás”.

Alçado ao plano nacional, Collor começou a ganhar cada vez mais espaço e foi consolidando uma posição de político moderno, um anti-Sarney. Aliás, os ataques de Collor a Sarney eram deliberadamente agressivos para que a imagem calasse mesmo fundo no coração dos brasileiros. Quando a campanha começou efetivamente, Collor já era um candidato competitivo, a anos-luz de distância do ex-governador alagoano.

Collor não foi a nenhum dos quatro debates do primeiro turno. Alegava que com, tanta gente se espremendo no palco, não seria possível expor ideias. Conversa fiada. Ele não queria se expor e ameaçar o capital político conquistado como o “Caçador de marajás”.

Onze dos 24 candidatos foram convidados para o primeiro debate da TV Bandeirantes. Além de Collor, surpreendentemente Ulysses Guimarães também se recusou a participar. Todos os outros que importavam, como Lula, Brizola, Covas e Aureliano estavam lá. Somente a apresentação do debate por Marília Gabriela com o auxílio de um locutor em off consumiu sete minutos.

Antes mesmo da campanha começar oficialmente, Collor já disparava nas pesquisas eleitorais. O ex-governador, que montou seu comitê na Casa da Dinda, apelido da residência da família no Setor de Mansões de Brasília, pulou na frente nas pesquisas ainda em maio. Brizola sempre esteve em segundo, e Lula, em terceiro. Em abril, apenas um nome superava o de Collor. Era Orestes Quércia, pré-candidato do PMDB. Quércia, contudo, perdeu a convenção para Ulysses, que nunca decolou.

No photochart
Quando começou o horário eleitoral, em 15 de setembro, Collor tinha 40% das intenções de votos contra 14% de Brizola, 7% de Maluf e 6% de Lula e Covas, de acordo com o Datafolha. Imaginava-se que com tempo de TV os candidatos desconstruiriam o paladino da moral. Isso não aconteceu. A propaganda de Collor era moderna, sabia explorar as potencialidades da TV. Ulysses, Covas e Brizola eram bons oradores, mas não tinham equipes que soubessem trabalhar naquela plataforma. Claro que não foi só por isso, mas o candidato do PDT estacionou, Lula encostou e os outros nunca cresceram.

O espanto que rondava as campanhas de Ulysses e Covas, que imaginavam estar na frente, disputando o primeiro lugar, mexeu com uma delas. A equipe de Covas buscava o chamado o efeito “pedra na água”, ao provocar uma onda de solidariedade a partir do momento em que os formadores de opinião se alinhassem à sua candidatura. Para isso, em julho fez um discurso balizador da sua campanha que ficou conhecido como “Choque de Capitalismo”. Era a forma de o PSDB se diferenciar de Lula e Brizola e ao mesmo tempo mostrar o profissionalismo no trato da questão pública que não via em Collor.

A proposta de Covas, depois de quase 30 anos de nacionalismo estatizante, era abrir o país, reduzindo desigualdades e oferecendo condições para aumentar o consumo interno. Para isso, pregava o candidato, “o Brasil não precisa apenas de um choque fiscal, precisa de um choque de iniciativa privada, sujeita a riscos e não apenas a prêmios”. O discurso, que também propunha dobrar a renda per capita em 20 anos, agradou muito ao empresariado nacional e aos formadores de opinião, como supunha a campanha do PSDB. Só não ocorreu o efeito “pedra na água”. Nenhuma onda se formou e Covas não subiu.

Com um quadro que não se mexia, com Collor sempre bem à frente, a única dúvida que restava era saber quem o enfrentaria no segundo turno. Alguns movimentos erráticos foram tentados pelos demais candidatos, mas nada colou. A ação mais espetaculosa seria o lançamento tardio da candidatura de Silvio Santos. O apresentador foi trazido para a campanha no mês de novembro, apenas a alguns dias do primeiro turno. Se emplacasse, poderia abalar a candidatura de Collor ou, quem sabe, credenciar o novo aspirante para disputar o segundo turno com o “Caçador de Marajás”.

Foi com certeza uma manobra política oportunística. Depois dela, muitas outras seriam vistas ao longos dos anos em outras campanhas nacionais e estaduais. A fórmula brasileira de dar um jeitinho para subverter a vontade do eleitor. Causar um embaraço ou fazer um barulho enorme na reta final para embaralhar artificialmente o cenário. Silvio foi lançado pelo nanico PMB na vaga do candidato Armando Corrêa. A renúncia de Aureliano Chaves foi cogitada para abrir espaço para o homem do Baú. Apesar do alvoroço que causou na campanha, a iniciativa foi impugnada pelo Tribunal Superior Eleitoral.

No primeiro turno da eleição presidencial de 1989, 72 milhões e 280 mil eleitores compareceram às urnas. Mesmo com todos os esforços lícitos e todas as tentativas heterodoxas para bater Collor, o novato na política nacional chegou na frente com folga. Teve 20 milhões e 611 mil votos (30,47%) contra 11 milhões e 622 mil (17,18%) dados a Lula. Brizola, que chegou em segundo em todas as pesquisas, perdeu a vaga no segundo turno no photochart para o petista.

Outra época, outras tecnologias. A apuração dos votos foi manual e apenas a totalização se deu eletronicamente. O resultado final foi conhecido três ou quatro dias depois do pleito. Houve casos de perda de urnas em rios ou em acidentes no transporte terrestre. O episódio mais curioso ocorreu no Amazonas, onde uma onça atacou um grupo que levava urnas de uma cidade ribeirinha para Manaus. Todos saíram ilesos, mas as urnas foram destruídas.

O TSE montou uma enorme estrutura no Centro de Convenções de Brasília para apresentar cada passo da apuração e da totalização dos votos. A primeira eleição brasileira pelo voto direto depois de 30 anos mobilizou também as grandes cadeias de TV e os principais jornais e revistas dos Estados Unidos e da Europa. O coração do Brasil palpitou até o momento em que foi anunciado o resultado final do primeiro turno.

O primeiro movimento logo após a apuração foi a aproximação de Leonel Brizola a Lula. O candidato do PDT declarou apoio a Lula no dia seguinte ao primeiro turno. Brizola, que sempre considerou a elite sua grande adversária, filosofou assim ao falar do seu apoio ao petista: “A política é a arte de engolir sapos. Não seria fascinante fazer agora a elite brasileira engolir o Lula, este sapo barbudo?”. O próprio Brizola acabara de engolir sua ausência do segundo turno.

O empenho do pedetista em favor do PT foi imenso. Ele participou intensamente da campanha e conseguiu uma altíssima transferência de votos, sobretudo no Rio e no Rio Grande do Sul, estados que havia governado. Lula ganhou em ambos no segundo turno. Venceu ainda no seu estado natal, Pernambuco, e no Distrito Federal.

Último debate
No segundo turno, a campanha dos dois finalistas foi reiniciada logo em seguida ao anúncio do resultado. Lula cresceu de imediato nas pesquisas, alavancado pelo apoio direto dos partidos de esquerda e velado do PSDB. Mesmo assim, em nenhum momento superou os índices de Fernando Collor. Dois debates foram realizados na reta final. Lula, segundo pesquisas da época, teria se saído melhor no primeiro e perdido no segundo.

O segundo debate ocorreu com Lula premido a se apresentar como um candidato confiável. Talvez por isso ele tenha se comportado como um veterano diante de um jovem político. Collor estava de terno claro, gravata torta no pescoço. Lula se apresentou sisudo, de terno preto, em nada parecido com o Lulinha Paz e Amor que ele inauguraria três campanhas depois.

Collor trazia uma pilha de pastas e mandou dizer a Lula, nos bastidores, que ali tinha provas de uma relação amorosa do candidato do PT fora do casamento. Chegou a dizer que não tinha dinheiro como Lula, que comprou um aparelho “3 em 1” — um à época moderno equipamento de som com toca disco, toca-fitas e gravador. Logo Collor, que morava no Setor de Mansões do Lago Norte. Imaginava-se à época que o “3 em 1” tinha sido um presente dado por Lula a uma namorada. Lula não reagiu à menção ao equipamento de som, nem no debate e nem depois.

Foi este o debate marcado por grande polêmica. A edição do encontro exibida pelo Jornal Nacional do dia seguinte foi muito contestada pelo PT. O partido acusava a TV Globo de ter favorecido Collor na edição do debate, tanto na seleção dos trechos como no tempo dado a cada candidato. Collor apareceu por 1m30s a mais do que Lula na reportagem sobre o debate. À época, mesmo líderes do PT reconheceram que Lula tivera desempenho pior que o do adversário. O PT entrou com ação no TSE pedindo a exibição de outros trechos do debate, mas o pedido foi indeferido. Desde então, a TV Globo não edita mais trechos dos debates nas reportagens sobre eles.

O Brasil mudou
O Brasil mudou muito de 1989 para cá. Perdeu a ingenuidade, cresceu em tamanho e responsabilidade. Os eleitores brasileiros também amadureceram. O desfecho do governo de Collor, com o seu impeachment, tornou a casca do país mais dura. O homem que foi eleito no meio de uma euforia incontida, caiu debaixo de uma euforia ainda maior.

Lula, que seria candidato outras duas vezes antes de se eleger presidente, enfrentou um enorme escândalo na sua primeira gestão. Ele superou o mensalão, mas sua substituta acabou afastada do poder como o seu primeiro opositor. Mais adiante, acabou preso no maior escândalo de corrupção da nossa história.

O Brasil, que viu mitos nascerem e desaparecerem na velocidade de cometa, é um país duro, temperado por tempos bons e tempestades políticas. Um país que gosta do debate, mas que às vezes se exaspera e se divide. Depois de sobreviver a tantas histórias, como a morte de Tancredo, o primeiro presidente civil pós-ditadura, o impeachment de Fernando Collor ou a prisão de Lula, o presidente metalúrgico, o Brasil saberá seguir em frente, definindo ele próprio o seu futuro.

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