sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Míriam Leitão - Sonhos precoces com a República

- O Globo

Muito antes da independência o Brasil já sonhava com a República. Cento e trinta anos depois de proclamada, ainda é preciso lutar pelo que ela representa

O poeta Silva Alvarenga alugou uma casa de dois andares na Rua do Cano, no centro do Rio, em 1790. Atualmente, é a Rua Sete de Setembro. Na parte de cima ele morava, na parte de baixo ele instalou a sede da Sociedade Literária onde conspirava contra a ordem colonial e pelas ideias republicanas. Jornais franceses eram lidos, traduzidos e distribuídos, apesar de a imprensa ser proibida pela Corte Portuguesa. Dois anos depois, Tiradentes foi para o cadafalso ali mesmo no centro do Rio pelas mesmas ideias. Isso não intimidou o poeta e seus amigos, e as confabulações continuaram até que foram presos em 1794. Essa foi a Conjuração do Rio.

Menos conhecida do que a mineira, a conspiração que levou o poeta e vários dos seus amigos para a prisão por dois anos e meio — sem sequer serem julgados — foi apenas um dos inúmeros movimentos ao longo da história brasileira nos quais se lutou, através de ideias ou de atos, pela república no Brasil. Muito antes da independência já se sonhava com um governo do povo.

O historiador Gustavo Henrique Tuna é doutor pela USP com uma tese sobre Silva Alvarenga e é autor do capítulo sobre a Conjuração do Rio no livro “Dicionário da República, 51 textos críticos”, organizado por Lília Schwarcz e Heloisa Starling. Entrevistei Heloisa e Gustavo Tuna no meu programa na Globonews.

— Realmente eles tinham uma ousadia considerável. O Alvarenga quando era estudante em Coimbra chega a publicar um livro sem autorização da Real Mesa Censória. Esse conjunto de pessoas da sociedade literária tinha muita ousadia — diz Gustavo.

A historiadora Heloisa Starling, no livro “Ser Republicano no Brasil Colônia”, faz um apanhado desses movimentos:

— A ideia da república desembarca no Brasil com dois sentidos bem contemporâneos, como a boa gestão da coisa pública, a defesa do bem comum em uma comunidade de homens livres. O governador de Pernambuco, por exemplo, achava que o Quilombo dos Palmares era uma espécie de república.

A ideia passeia por várias conjurações, como a Baiana, e a República é proclamada em Pernambuco em 3 de março de 1817. Em 1870, São Paulo com seu Manifesto Republicano pede uma república que fosse definida através de uma assembleia constituinte.

Sonhada desde a colônia, a República é afinal proclamada em 15 de novembro há exatamente 130 anos. Mas quando chega é, segundo vários autores, um governo sem povo.

— José Murilo de Carvalho diz isso. Euclides da Cunha diz que a república falhou porque não incluiu os párias. Machado de Assis lembrou que não bastava eleição. Graciliano Ramos diz que ela era só uma casca — diz Heloisa Starling.

Um sonho mantido por movimentos tão precoces e tão ousados acaba chegando já descarnado do seu sentido de um governo de todos, em que pessoas livres se organizam, elegem seus representantes para buscar o bem geral. Nesses 130 anos, o país viveu duas ditaduras, uma república oligárquica, passou por sustos e instabilidades, mas fez uma Constituição, em 1988, que chamou de cidadã.

— A Constituição tem vários avanços, mas ela está sob ataque. A república, assim como a democracia, tem muitas insuficiências mas tem se mostrado um regime apto a garantir um mínimo de diversidade e de direitos — diz Gustavo Tuna.

As histórias dos movimentos antecedentes ajudam a fortalecer a busca dos ideais de inclusão, de defesa do interesse de todos, que sempre estiveram presentes na proposta republicana. No fim do século XVIII havia 38 boticas no Rio. Nelas se preparavam os remédios com base em plantas locais.

 A ideia dos conjurados do Rio era produzir uma ciência voltada para a saúde do povo. Um dos mais curiosos pontos de encontro era exatamente essas boticas, nas quais poetas, boticários, médicos, marceneiros, ourives, entalhadores, ou simplesmente pacientes, conversavam — enquanto esperavam os remédios ficarem prontos — sobre as possibilidades abertas para o país. Os textos produzidos eram passados de mão em mão. Porque é assim que as ideias caminham. “Os livros, inquestionáveis portadores de conhecimento, eram alvos de intensa vigilância”, escreveu Gustavo Tuna. E aquela casa da Rua Cano estava cheia de livros. 

A República entre nós foi uma ideia que chegou antes do seu tempo, mas agora, 130 anos depois de proclamada, ainda é preciso trabalhar pelo sonho que ela representa.

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