quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Míriam Leitão - A esperança dos recomeços

- O Globo

Dilema argentino é que reduzir a crise social é urgente, mas sem estabilidade na economia qualquer plano estará fadado ao fracasso

A Argentina vai experimentar de novo o mesmo caminho de ampliar os gastos, estimular o crescimento, não pagar a dívida externa. Esses foram os sinais dados ontem pelo novo presidente Alberto Fernández. O discurso peronista volta com força diante do fracasso do liberalismo defendido pelo ex-presidente Mauricio Macri. O truque do discurso de Alberto Fernández é o mesmo de qualquer político: colocou toda a culpa nos últimos quatro anos. É verdade que Macri fracassou na economia, mas Cristina Kirchner deixou um país já com a crise instalada.

A esperança é sempre tentadora em recomeços, principalmente quando o ritual democrático é respeitado. O Congresso estava lotado de peronistas cantando diante do novo presidente e sua vice eleitos pelo voto direto. Podiam comemorar, era a hora da vitória depois de terem saído do governo há quatro anos. O presidente derrotado em sua tentativa de permanecer no poder, Mauricio Macri, ouviu respeitosamente o canto dos vencedores. No discurso de posse, Fernández exibiu os dados inegáveis da crise e prometeu derrotá-la com os remédios nos quais acredita.

Ele avisou que primeiro quer fazer a economia crescer para depois pagar os credores e disse que o país já está em “default virtual”. Ainda que o FMI tenha mandado mensagem simpática avisando que quer se entender com o novo governo argentino, o fato é que os juros não podem ser pagos por falta de dólares em caixa. Só neste dezembro são US$ 5 bilhões para quem tem reservas líquidas que podem estar abaixo de US$ 10 bilhões. De qualquer maneira, apesar de ele ter falado em renegociação, é possível que o novo governo deixe para anunciar qualquer medida em relação à dívida junto ao FMI e credores privados depois de uma negociação com o Fundo.

O novo governo prometeu um plano de combate à pobreza, mas também diz que vai estimular a produção, decretou emergência na saúde, avisou que fará acordos com os trabalhadores, industriais, produtores rurais. Não disse como pretende combater a inflação, que na Argentina tem sido um problema crônico.

O país, na verdade, há muito tempo não tem inflação sob controle. Em 2002, chegou a 40% ao ano. Foi o ano da crise que levou à moratória. Caiu para 3% em 2003, mas logo tornou a subir e em 2005 já tinha voltado aos dois dígitos, para 12,3%. Cristina tomou posse em 2007 e em 2014 o aumento de preços já tinha disparado para 23,9% ao ano. De 2015, não há estatística oficial, porque ela fez uma intervenção no Indec, o IBGE de lá, que comprometeu toda a credibilidade do índice. Como não vencia a febre, tentou alterar o termômetro. Macri revogou essa intervenção no índice e os preços subiram em parte porque o registro estava subestimado anteriormente. Além disso, estava represada em vários preços, como nos de energia. Essa é a história inteira. Ontem o presidente Alberto Fernández disse que é a primeira vez desde 1991 que a inflação chega a 50%. Isso é verdade, mas apenas parte dela.

O grande dilema argentino é que reduzir a grave crise social é urgente, mas sem estabilidade econômica qualquer plano de transferência de renda aos mais pobres está fadado ao fracasso. Deixar de pagar a dívida externa é mais do que razoável. É determinado pela realidade de não haver dólares. Mas o país precisa voltar a ter moeda. Hoje o peso serve para o pagamento das transações, mas não como reserva de valor, ou poupança, como explicou Carlos Melconian no “Clarín”. O peso é uma meia moeda, com apenas uma parte das funções clássicas.

Alberto Fernández deu também outro recado: vai mandar ao Congresso um projeto de reforma do Judiciário. Afirmou que a Justiça, em vez de julgar, “perseguiu”. E o fez “com agentes de Estado infiltrados e anuência da mídia”. Com uma vice que responde a nove processos, essa será mesmo uma perigosa batalha travada no coração da democracia argentina.

Não há tarefas fáceis pela frente, na economia e na política. Mas como qualquer presidente eleito ele tem a força do voto com ele neste começo. Que saiba usar com sabedoria seu capital político. E saiba que valores quer preservar. Os aplausos o cobriram quando disse: “vamos ouvir os movimentos sociais, como a juventude, o ambientalismo, o feminismo, os setores acadêmicos”. Nesse aspecto, um país normal.

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