sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Risco à democracia marca bolsonarismo: “Estamos em uma batalha de narrativas”, diz Lilia

Para antropóloga e historiadores, intelectuais devem sair a campo e encarar o debate público

Por Malu Delgado / Valor Econômico — De São Paulo

Um governo que produz as próprias verdades sem compromisso com a história e com a ciência. A avaliação da antropóloga e historiadora, Lilia Schwarcz, sobre o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro não é suave. Disposta a deixar o hermetismo da academia e se lançar nas redes sociais, a professora da USP acha que num momento de disputa de narrativas históricas como o atual, os intelectuais devem sair a campo e encarar o debate público. Governos deste tipo, afirma, atuam “no sequestro social”. 

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Que balanço faz deste primeiro ano de gestão de Bolsonaro?

Lilia Schwarz: Democracia é um regime, por definição, inconcluso. É preciso conquistar a cada dia nossos direitos. Nos últimos 30 anos, os brasileiros conviveram com uma democracia, senão absoluta, pelo menos plena: as instituições funcionaram de maneira autônoma e você não tinha uma imposição do Executivo sobre o Legislativo e Judiciário, e vice-versa. Os brasileiros viveram um momento forte de consolidação de pautas minoritárias e de uma agenda mais ampla, plural e inclusiva. São pautas que hoje, neste governo, estão sob ameaça.

Valor: Ameaças a direitos constitucionais, são a postura mais preocupante deste governo?

Lilia: Nos 28 anos em que nosso presidente foi deputado não primou por defender essas pautas. Hostilizou-as. Eu não tenho problema nenhum com o pensamento conservador. Ao contrário. Acho que a democracia funciona muito melhor quando lida com a diferença. Mas neste caso é regresso democrático. Não é a única pauta em regresso.

Se prestarmos atenção nos ataques à academia e à ciência, veremos que é um governo que claramente produz suas próprias verdades e não tem muito apego a fatos e informações. Há o ataque forte à ciência e ao jornalismo. Mais que uma mentira isolada, conforma um sistema de mentiras que alimenta certo grupo de brasileiros.

Valor: Para onde o Brasil caminha e qual seria o papel da academia? Ela tem sido omissa?

Lilia: No meu livro, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, chamei esses governos, usando fatos citados por outros autores, de “democraduras”. São governos que têm uma forma democrática, mas um conteúdo altamente autoritário. Têm em comum esse tipo de pautas. São presidentes que preferem não fazer o debate público, porque eles se movem nas bolhas das redes sociais. Há momentos em que a intelectualidade brasileira é chamada a opinar publicamente.

Escrevi um livro sobre autoritarismo, que penso que foi uma das primeiras respostas a esse governo, na minha área. Aos que reagiram com espanto à vitória de Jair Bolsonaro, digo no livro que nós sempre fomos autoritários. Ou seja, não é uma resposta atual. Nosso presente está lotado de passado. Na academia nós vivemos um mundo muito protegido da política. Nas redes, foi a primeira vez em que fui chamada de esquerdopata, com maiúsculas e símbolos que eu nem sabia o que eram. Essa exposição é importante, faz você refinar os argumentos e refletir até onde pode ir. Existem certos momentos em que, como se diz nos EUA, “go public”. Ir a público e testar se você pode ajudar no debate. Estou neste momento.

Valor: Sua premissa sobre as “democraduras” suscita que o Brasil está num beco sem saída?

Lilia: Historiador é ruim de previsão. Somos mais a máxima do conselheiro Aires, de Machado de Assis, que dizia que as coisas só são previsíveis quando já aconteceram. Eu imaginava um governo radical, mas também imaginava que nosso presidente pararia de fazer uma política de palanque e construiria consensos. Não é esse o interesse do governo. O interesse é trabalhar nos binarismos. Me preocupa muito a intolerância religiosa, a racial, de gênero. Um presidente que transforma identidade de gênero em ideologia de gênero e altera dados da realidade é um presidente que não tem vocação para governar em nome de todos. Um presidente que recusa dados de “global warming” e demite o diretor do Inpe [Ricardo Galvão], reconhecido com um dos dez maiores cientistas do mundo, que chama de pirralha uma garota que virou o símbolo de uma luta necessária da ecologia é um presidente que não tem vocação para representar um país tão grande como o Brasil. Se existe uma saída, é de longo prazo e é a aposta na educação. Temos um ministro que aposta no escândalo e não se comporta. Que tipo de mensagem esse ministro passa?

Valor: Como o presidente se apropria do discurso Deus, Pátria, Família?

Lilia: Bolsonaro se elegeu em parte com esse discurso. As igrejas evangélicas são muito plurais. Esse é um país laico. Quando o presidente se define a partir de uma religião só, ele rasga a Constituição. Ele tem se valido desse grupo. Bolsonaro não é só um autoritário. Ele é um populista. Muitos desses representantes máximos das “democraduras” têm esse discurso populista. A característica do populismo é retratar a realidade de forma muito simplista, com frases curtas, de grande efeito, e prometer o que você sabe que não pode cumprir. Não raro esses líderes populistas se associam a imagem de pequenos deuses na terra. A imagem de Bolsonaro como mito e de Eduardo Bolsonaro como mitinho é preocupante. O que é o mito? Mito é com quem você não discute, com quem você não dialoga. O mito está numa esfera muito diferenciada dos demais cidadãos. O mito não tem que responder. Não tem que fazer pactos republicanos. O mito é tudo, menos um presidente republicano. Bolsonaro usa e abusa de seus símbolos. O problema não é se apropriar da bandeira, mas é garantir as cores da bandeira só a uma parte dos brasileiros. Esses tipos de governo atua no sequestro social. O tema do nós, os justos, eles ruins. É o uso da simbologia pátria, como se a Pátria fosse propriedade privada do presidente. Ele governa como se estivesse em casa própria, a partir de argumentações de fundo familiar e íntimas.

Valor: Se o autoritarismo nos acompanhou há tantos séculos, onde foi que essa tampa da panela de pressão se abriu? E por quê?

Lilia: Temos que pensar internacionalmente. A eleição de [Donald] Trump teve efeito mundial. Foi uma onda reacionária que nos invadiu. Minha geração errou ao achar que a democracia era o final da linha. Há manuais de governo. Basta ver o encontro conservador que tivemos aqui em São Paulo. O governo Bolsonaro permitiu que as pessoas saíssem de suas cavernas.

Valor: Uma das características desse governo é a sucessão de recuos. O presidente adota um comportamento inidôneo?

Lilia: Ele tem um comportamento político que não se preocupa com a idoneidade. Até então nós julgávamos um político a partir da sua idoneidade e da sua ética. Nós nunca tínhamos visto como qualidade o fato de um político dizer, desdizer e não se arrepender disso. E são ministros sem nenhum receio de lançar falsas verdades. É impressionante a capacidade que eles têm de dizer e se desdizer.

Valor: Nossas instituições são sólidas o suficiente para conter essa onda autoritária?

Lilia: Eu penso que não, tanto que nosso chefe do Executivo tenta, a todo momento, passar por cima delas. Bolsonaro destituiu o fiscal que o multou por pescar em área proibida. Bolsonaro entrou no governo para ser um vingador. Estamos num momento de batalhas de narrativas históricas. Há duas narrativas muito castigadas: a escravidão e a ditadura militar. O Brasil é um país que não pensa em reparações. É como se fosse o fantasma que volta para puxar seu pé. A Constituição de 1988 abriu mão de legislar sobre a questão militar. Fomos o último país do ocidente a abolir a escravidão mercantil e nunca se pensou em ressarcimento. E esse governo, de forte influência militar, tem essa campanha aloprada de negar as consequências do golpe.

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