Cientista político alerta que eventual retomada do crescimento embute o risco de favorecer um projeto autoritário
Por Cristian Klein / Valor Econômico — Do Rio
Mesmo dando certo, com a recuperação econômica, o governo Bolsonaro pode dar errado, pelo que mostrou no primeiro ano, quando a gestão em áreas como política externa, educação e meio ambiente foi “absolutamente ruinosa”. O alerta é do cientista político e diretor-geral da Fundação Fernando Henrique Cardoso, Sergio Fausto, 57 anos, para quem a eventual retomada do crescimento embute um risco: o de favorecer um projeto autoritário do bolsonarismo. Fausto afirma que as instituições reagiram bem aos ataques feitos pelo presidente e seus aliados contra, entre outros, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e a imprensa. Mas teme pela capacidade de resistência institucional, sobretudo se a economia fortalecer o presidente. “Esse teste de estresse você aguenta por quatro anos. Aguentará por mais tempo?”, questiona.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Que balanço faz deste primeiro ano de gestão de Bolsonaro?
Sergio Fausto: A descoberta retumbante é que quem manda no governo é o Bolsonaro, ao contrário de algumas fantasias que se fizeram no inicio do mandato, de que, a rigor, haveria um dispositivo militar e outros setores mais pragmáticos que dariam o tom da banda governamental. Não. Quem dá o tom é o presidente e o seu núcleo ideológico. Aparentemente, os militares recuaram para uma posição de trincheira para proteger a corporação dos ímpetos politizantes do bolsonarismo. Sergio Moro também frustra expectativas de quem imaginava que ele pudesse ser uma espécie de contrapeso legalista que se espera de um ministro da Justiça que vem do Poder Judiciário. Não é isso. Ele reconhece o mando político de Bolsonaro e dança conforme a música cujo tom é dado pelo presidente.
Valor: Há exceção?
Fausto: É o ‘posto Ipiranga’. O ministro Paulo Guedes [Economia] conseguiu uma esfera de autonomia maior e isso se estende a alguns outros setores ligados à área econômica, como Infraestrutura e Minas e Energia. São espécies de reservas de racionalidade dentro do governo. Paulo Guedes encontrou no Congresso uma liderança disposta a fazer avançar uma agenda reformista, personificada no [presidente da Câmara] Rodrigo Maia. A dobradinha Rodrigo Maia e Rogério Marinho - o secretário de Previdência, que é o principal negociador, não é o ministro da Economia - produziu resultados. Isso fez com que a recuperação cíclica da economia fosse favorecida neste último trimestre do ano por uma percepção de que existe uma agenda sobretudo na área fiscal que vai ganhando musculatura. Tem o caso da Previdência, já aprovada, e iniciativas de reformas semelhantes também nos Estados. Tem política de governo nessa área.
Valor: E nas outras áreas?
Fausto: Não tem política pública. Em áreas como política externa, educação e meio ambiente, a gestão do governo tem sido absolutamente ruinosa. Há duas perguntas que se colocam: a economia ganhará impulso sustentável ou a gestão ruinosa em outras áreas acabará por interferir no processo de retomada? E mais importante do que isso, do ponto de vista de valores caros a uma sociedade aberta e democrática, é se, com o respaldo da retomada da economia, não acabará por se impor, no médio prazo, um projeto de poder que tem características claramente autoritárias e regressivas.
Valor: Como poderia acontecer?
Fausto: O governo e o seu núcleo ideológico submetem, de maneira sistemática, as instituições a testes de estresse. E elas têm respondido de maneira muito positiva. O Congresso é um destaque extraordinário, seja pelo que fez de construtivo, seja pelo que impediu que fosse feito. Serviu como freio, obstáculo, à implementação de medidas claramente danosas aos direitos humanos e à democracia no Brasil: excludente de ilicitude, sufocamento do financiamento dos jornais e por aí vai. E o STF, sobretudo na figura do decano Celso de Mello, respondeu à altura toda vez que foi provocado acintosamente. Agora, esse teste de estresse você aguenta por quatro anos.
Aguentará por mais tempo? Porque o governo começa a mexer suas peças, nomeia ministros [ao STF], pode vir a se organizar como partido político, pode passar a ter bancada mais orgânica no Congresso. É um processo que inspira temor. As instituições têm resistido, mas aos olhos da população, segundo pesquisas, continuam com prestígio muito baixo.
Valor: Mas Bolsonaro não se mostrou muito desagregador?
Fausto: Sim, Bolsonaro não é um líder com grande capacidade estratégica. Tem muita capacidade de comunicação, é destemido, dobra a aposta, e esta ousadia é percebida como um atributo positivo pela sua base. É capaz portanto de manter a sua base permanentemente mobilizada. Isso é uma novidade na história brasileira. É um presidente de extrema-direita que tem enraizamento popular. Isso permite que ele tenha 30% do eleitorado. A despeito de tudo e de todos, ele manteve essa base solidamente e isso o credencia como candidato forte à reeleição. No caso do Bolsonaro, é tudo mais imprevisível, pelas características e pela trajetória, de onde ele vem.
Valor: Como assim?
Fausto: O Bolsonaro tem uma questão sociológica. Vem de um meio político em que as fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade não estão claramente demarcadas e isso o torna vulnerável a curtos-circuitos, a chuvas e tempestades.
Valor: Está se referindo à relação dele com milicianos?
Fausto: Isso, não estou fazendo nenhuma acusação, mas me baseando em fatos conhecidos. Meu ponto de vista não é criminal, é sociológico, é o meio do qual ele vem. Ele carrega esse meio consigo. Nunca houve um presidente com as origens do Bolsonaro, e há investigações de uma pessoa muito próxima não só em relação ao filho mais velho, mas a toda família Bolsonaro. É um segredo de polichinelo que é um ponto de vulnerabilidade do presidente.
Valor: Refere-se ao ex-capitão da PM Antônio Nóbrega, foragido da Justiça e acusado de liderar um grupo de assassinos de aluguel?
Fausto: Tem vários elos, vários laços. Não estou tirando nenhuma conclusão precipitada. São fatos sequer negados por Bolsonaro.
Valor: Qual é a novidade que Bolsonaro traz?
Fausto: Nunca houve no Brasil uma liderança nacional de direita como ele. Você tem fenômenos locais de políticos de direita, com enraizamento popular. Maluf é um caso em São Paulo. Lacerda foi no Rio de Janeiro. Nunca chegaram a ser lideranças nacionais. O Bolsonaro não só está mais à direita do que estavam Lacerda e mesmo Maluf - e portanto é correto caracterizá-lo como um político de extrema-direita - mas também se diferencia por ser uma liderança nacional. Hoje em dia há apenas duas lideranças nacionais: Lula e Bolsonaro. De onde vem esse enraizamento popular do Bolsonaro? Com a conexão que ele estabeleceu com o mundo evangélico, com a chamada “família militar”, e ao penetrar numa classe média conservadora do interior do país, sobretudo das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, ligada política e sociologicamente ao agronegócio. Esses setores, em geral, emprestavam apoio na eleição presidencial ao PSDB pela contraposição com o PT, embora não o fizessem de coração. O PSDB durante um tempo funcionou como uma espécie de dique, de represa, que recolhia o impulso à direita.
Valor: Qual é o ponto fraco de Bolsonaro?
Fausto: Essa insensibilidade para o tema da desigualdade, mesmo para o tema da pobreza, é um dos principais calcanhares de Aquiles dele. Se o Brasil não atacar, por meio de políticas públicas, da solidariedade social, a desigualdade e a pobreza, ele se transformará num país cada vez mais suscetível à violência, às explosões e à instabilidade. As enormes desigualdades no Brasil não são mais desigualdades, são fossos que dividem a sociedade em vários arquipélagos e estão em estado de guerra latente, uns com os outros.
O que vocês precisam entender é que: O que faz a guerra é a injustiça. A pauta que interessa o brasileiro, no momento, é moral e não econômica.
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