terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Marco Aurélio Nogueira: O ano de Marx

- O Estado de S. Paulo

O antimarxismo atual não conhece Marx, é pura ideologia, opera por sobre a espuma levantada pelas disputas em torno das ideias marxistas

Não seria necessário que diversos integrantes do futuro governo Bolsonaro insistissem na ideia de “libertar o Estado brasileiro do marxismo cultural” para que se percebesse que um espectro voltou a circular no Brasil em 2018.

Esse espectro atende pelo nome de Karl Marx, filósofo e ativista político alemão (1818-1883), um dos fundadores do comunismo moderno e patrono da mais influente teoria política contemporânea.

O mundo comemorou, ao longo de 2018, os 200 anos de nascimento de Marx. Registros feitos por inúmeros seminários, congressos científicos, livros, artigos, filmes e entrevistas dedicaram-se a homenagear o pensador alemão e a verificar em que medida suas teses continuam a dialogar com a realidade do mundo atual. O balanço foi positivo, mostrando que Marx, em que pese o incontornável desgaste sofrido com a passagem da história, permanece vivo como intérprete do nosso tempo e, em particular, das transformações do capitalismo.

O Brasil não ficou fora das comemorações, mas terminou o ano com o reposicionamento político dos inimigos de Marx, concentrados agora no combate ao “marxismo cultural”, entendido como a disposição de ocupar totalitariamente os espaços públicos via controle da cultura e de suas instituições, da escola à imprensa e às artes, tudo devidamente concentrado em cercear a liberdade de pensar e falar, modelar mentes e impor agendas inadequadas à sociedade (gênero, aborto e clima, por exemplo). Na versão simplória corrente, essa preponderância do “marxismo cultural” estaria a impedir a “regeneração nacional” e a contaminar os diferentes âmbitos da vida familiar e do Estado, indo da escola à política externa.

O antimarxismo dos nossos dias não conhece Marx, não leu seus livros nem as análises de seus intérpretes. É pura ideologia, que opera por sobre a espuma levantada pela circulação das ideias marxistas e pelas disputas ideológicas em torno delas. O que lhe falta de rigor filosófico e conhecimento histórico é compensado por uma combatividade histriônica que pouco se importa com o que Marx realmente disse ou com o significado de suas proposições. Despreza tudo o que o marxismo trouxe de contribuição crítica – por exemplo, sua teoria sobre o funcionamento do capitalismo – para vê-lo exclusivamente pela lente do militante revolucionário, devidamente desfocada. É um antimarxismo inquisitorial, que pressupõe que as ideias de Marx seriam tóxicas a ponto de impregnar aqueles que delas se aproximam, como um vírus.

Luiz Carlos Azedo: O lugar de Temer

- Correio Braziliense

“Bolsonaro servirá de segunda baliza para a avaliação do governo Temer. A primeira foi o desastroso governo de Dilma Rousseff.”

Para ser presidente eleito pelo voto direto é preciso grande dose de sorte numa conjuntura favorável, além da capacidade de catalisar os sentimentos mais profundos da maioria dos eleitores. Por isso, os políticos dizem que a Presidência é “destino”. Para ser o vice, não; a sorte e os votos vêm de carona. O mais importante é a capacidade de se articular politicamente com aquele que reúne essas condições e receber o apoio de seu próprio partido e das forças aliadas. Quanto menos quereres do titular, mais perigoso é o vice. O Brasil já teve 24 vice-presidentes da República, alguns deles chegaram a assumir em caráter permanente a Presidência. O último é o presidente Michel Temer, efetivado no cargo com o impeachment de Dilma Rousseff. Hoje, passará a faixa para o presidente eleito, Jair Bolsonaro, cujo vice é o general Hamilton Mourão, que herdará o “carma”.

Há vice-presidentes que deixaram seu nome na memória política do país. O primeiro foi Floriano Peixoto, o “marechal de ferro”. No dia da Proclamação da República, encarregado da segurança do ministério do Visconde de Ouro Preto, Floriano se recusou a atacar os revoltosos. Justificou sua insubordinação, respondendo ao próprio: “Sim, mas lá (no Paraguai) tínhamos em frente inimigos e aqui somos todos brasileiros!” Floriano Peixoto deu voz de prisão ao Visconde de Ouro Preto, gesto que viria a se repetir algumas vezes ao longo da República. Vice-presidente do Governo Provisório, foi eleito vice-presidente constitucional e assumiu a Presidência em 23 de novembro de 1891, com a renúncia do marechal Deodoro da Fonseca. Governou por decreto, como se fosse um ditador, recorrendo, por longo período, ao “estado de sítio”. Floriano inaugurou a política de culto à personalidade e o presidencialismo vertical na política republicana, mas passou o cargo ao sucessor eleito, o presidente Prudente de Moraes. Eleito em 1918, com Rodrigues Alves, que faleceu antes de tomar posse, Delfim Moreira exerceu a Presidência interinamente até a eleição de Epitácio Pessoa, no ano seguinte, voltando à vice-presidência. Outra transição pacífica.

As Constituições de 1934 e 1937, que davam mais poderes ao ditador Getúlio Vargas, extinguiram o cargo, que somente foi restaurado pela Constituição de 1946. Até a Emenda Constitucional 9, de 1964, do regime militar, o vice-presidente era eleito separadamente do presidente, da mesma forma como ocorria na Primeira República. O presidente João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964, foi eleito vice-presidente da República duas vezes: a primeira, com Juscelino, em 1950, tendo mais voto do que ele; a segunda, com Jânio Quadros, nas eleições de 1960, graças à manobra dos sindicalistas paulistas, que lançaram a chapa Jan-Jan e “cristianizaram” o marechal Henrique Teixeira Lott, candidato do PTB. Com a espetacular e imprevisível renúncia de Jânio, Jango assumiu o governo, depois de uma crise na qual os militares ligados à UDN tentaram impedir sua posse. Acabou destituído pelos militares em 31 de março de 1964. O resto da história todos conhecem. Foram 20 anos de ditadura.

Eliana Cantanhêde: Feliz Ano Novo, Brasil!

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro foi eleito com 39,2% dos votos, mas precisa governar para 100% dos brasileiros

Se 2018 foi um ano peculiaríssimo, de muita polarização e grandes emoções, 2019 será um ano tenso, com muita coisa por fazer e grandes interrogações, mas a maioria vitoriosa torce para dar certo, boa parte dos derrotados ou alheios também e, por enquanto, só a minoria da minoria esfrega as mãos para dar errado.

Uma coisa é ser contra o governo Jair Bolsonaro, que toma posse hoje depois de eleito legitimamente pelas urnas. Outra, muito diferente, é torcer e trabalhar para dar tudo errado, o governo implodir, a economia explodir, o mau humor se generalizar. Quem pode lucrar com isso? Absolutamente ninguém, nem a oposição.

Goste-se ou não, Bolsonaro venceu e está nas mãos dele aprofundar a recuperação da economia, abrir perspectivas, investimentos e empregos, reprimir a corrupção, distribuir renda e fazer o Estado funcionar como Estado e a iniciativa privada, como iniciativa privada. Disso tudo depende o bem-estar dos brasileiros.

Dos 147,3 milhões de eleitores, 57,7 milhões (39,2%) votaram no novo presidente e 89,3 milhões (60,8%), não. Entre estes, 42,5 milhões, quase um terço, não votaram nem em Bolsonaro nem em seu adversário do segundo turno, Fernando Haddad, do PT. Somam-se aí ausentes, votos nulos e brancos.

Esses números dizem muito da situação política. Assim como seus opositores têm de reconhecer a sua legitimidade, Bolsonaro precisa admitir que teve o voto de menos de 40% e vai governar para 100% dos eleitores – e da população. Vai ter de avançar, ceder e buscar o consenso, sempre negociando com o Congresso e prestando contas à opinião pública. A mídia, por mais agredida, continuará no seu papel de apurar e cobrar.

A posse será animada e festiva, como sempre, mas o esquema de segurança será particularmente rigoroso, cheio de limitações. Faltar guarda-chuva e carrinho de bebê é curioso e limitante, principalmente na época chuvosa de Brasília, mas será que vai faltar também a missa na catedral de Brasília?

Ranier Bragon: Mão no coldre

- Folha de S. Paulo

Figurino que se mostrou sucesso no palanque se repetirá no governo?

Enfim, Jair Messias Bolsonaro sobe a rampa nesta terça-feira (1°) para receber a faixa presidencial.

Carrega uma autoconfiança e um desdém com o contraditório poucas vezes vistos. A parentada se esbalda em exibir camisetas com recadinhos para a malta e em congestionar as redes sociais com toda a sorte de regras sobre como estão certos e sobre como são a redenção para tudo isso que está aí. Brasil acima de tudo, Deus acima de todos e eles acima do Brasil, de Deus e de todos.

Veja a promessa de facilitar a posse de armas para o “cidadão de bem”. Você já deve ter calo nos ouvidos de tanto escutar policiais recomendarem não reagir a assaltos. O bandido tem a seu favor o elemento surpresa, a prática. E sua vida sempre vale mais do que qualquer bem material.

Mas os Rambos de botequim não estão preocupados com estudos, lógica, racionalidade, essas besteiras.

Enxergam-se como um Lee Van Cleef de barriga avantajada e pantufas a acertar testas de malandros, todos lerdos e ruins de mira, em um desempenho que policiais treinados muitas vezes não conseguiram ter.

Pablo Ortellado: A divisão consolidada

- Folha de S. Paulo

Grupos políticos organizados fomentam antagonismo de identidades que corrói o convívio democrático

Começa hoje uma nova era. O levante antissistêmico que explodiu em 2013 e ganhou uma liderança conservadora em 2015 passa a governar o país. Não se trata apenas de uma mudança de governo, mas também de uma reestruturação da esfera pública e da emergência de um novo espírito do tempo.

De 2014 a 2018, o Brasil estruturou uma nova divisão política que se sobrepôs e de certo modo ultrapassou a antiga.

No debate público, questões relativas a políticas sociais e econômicas foram incorporadas e subordinadas, de um lado, pela comoção do combate à corrupção e da defesa da família tradicional e, de outro, pela promoção da justiça social e pela luta contra o machismo e o patriarcado.

Embora originalmente deflagrada pelos conservadores, a divisão é relacional. O conservadorismo triunfante é, antes de tudo, um movimento de negação. Assim, não deveríamos falar de uma ascensão conservadora, mas de uma reação conservadora.

Ela é, por um lado, a negação da corrupção cujo expoente máximo seria o petismo. Por outro, é a rejeição da desestruturação da família tradicional que estaria sendo levada a cabo pelos movimentos feminista e LGBT.

Como movimento relacional, a divisão se alimenta de uma resposta antagônica do campo opositor. Mas essa contrarreação não é apenas a afirmação do que os conservadores negam, com sinais invertidos. Nossa polarização é desencontrada.

A esquerda se entende como defensora da justiça social e vê nos conservadores a defesa da desigualdade e dos privilégios do patriarcado, cinicamente disfarçados de combate à corrupção e defesa da família.

Marcos Augusto Gonçalves: Primeira temporada

- Folha de S. Paulo

De quatro a cinco núcleos dramáticos devem cercar o personagem principal, o Mito

Começa hoje a primeira temporada da nova série política que vai galvanizar o país. O enredo, como pede o gênero, terá intrigas palacianas, disputas pelo poder e conflitos variados.

Quatro ou cinco núcleos dramáticos, como já vazou, vão se distribuir em torno do personagem principal, um militar reformado, conhecido como Mito, que simpatiza com ideias de extrema direita e é um fenômeno eleitoral populista.

O primeiro núcleo é o econômico. O destaque é um economista que, nas palavras de um ex-presidente do Banco Central, “nunca produziu um artigo de relevo, nunca dedicou um minuto à vida pública e não faz ideia das dificuldades”.

Quer aplicar fórmulas que aprendeu na Universidade de Chicago para levar o país à terra prometida do “milk and honey” no reino mágico do ultraliberalismo. Inábil, criará muitos atritos e poderá deixar a temporada antes do fim.

O segundo núcleo é o político. A estrela é um parlamentar sulista, formado em veterinária, que chefia a Casa Civil. Sem envergadura para o cargo, terá que lidar com congressistas gananciosos e oponentes implacáveis, além do confuso partido do Mito. Já admitiu ter aceitado dinheiro de caixa 2 em campanha eleitoral, mas diz que se acertou com Deus.

Joel Pinheiro da Fonseca: Verdades e mentiras

- Folha de S. Paulo

A maioria das pessoas não quer a verdade, busca validação para crenças que reafirmem seus interesses

Passei parte do último dia do ano discutindo com pessoas que, depois de assistirem a um vídeo de YouTube, se convenceram de que a facada em Bolsonaro foi uma farsa.

O vídeo é sofrível: uma trilha sonora de tensão intercala fotos supostamente reveladoras e um texto com especulações mirabolantes. Indago: então a Polícia Federal que investiga o caso, vários veículos de imprensa –inclusive aqueles francamente contrários a Bolsonaro– e ainda as equipes médicas de dois hospitais estão todos mentindo? Sim.

Seria um vídeo anônimo no YouTube recheado de especulações sem provas mais confiável do que uma matéria de jornalistas profissionais que buscam apurar os fatos e do que as conclusões de investigadores da polícia?

Quem quer acreditar em algo encontra as justificativas. Quanto mais inteligente e estudado for, mais terá facilidade em construí-las. E é inútil debater diretamente contra essas justificativas, pois assim que se derruba uma aparecem outras. A discussão se torna um exercício infrutífero e a possibilidade de alguma sensatez cada vez mais distante.

A maioria das pessoas (e nós mesmos, grande parte do tempo) não quer a verdade. Busca validação para crenças que reafirmem seus interesses e sua identidade. Confunde assertividade retórica com evidência racional. Sempre foi assim.

A novidade é que agora os canais de informação estão pulverizados, dando voz a todo tipo de opinião (e formadores de opinião) e “fatos alternativos”. Isso é uma oportunidade e um risco.

A primeira safra de novas lideranças que chegou ao poder surfou essa onda usando e abusando de seu poder de manipular massas perdidas em meio ao caos da informação. Donald Trump, nos EUA, elevou a mentira a um novo patamar no discurso público.

O jornal Washington Post enumerou todas as mentiras ditas pelo presidente (e não contou opiniões controversas ou dúbias, apenas afirmações frontalmente contrárias aos fatos) ao longo de seu mandato até o fim de dezembro deste ano: 7.645. Ou seja, uma média de mais de dez mentiras por dia, em geral cantando falsas vitórias de seu governo.

Merval Pereira: Bolsonaro diante da História

- O Globo

Cabe a ele desanuviar o ambiente político e encaminhar o país para novos rumos, como a vontade majoritária do eleitorado quis

O governo que se inicia hoje com a posse de Jair Bolsonaro na Presidência da República, ao mesmo tempo em que confirma o mais longo período democrático ininterrupto no Brasil, também repete uma situação que se tornou comum no país, revelando a fragilidade dessa mesma democracia, ainda em progresso: Bolsonaro é o terceiro que recebe a faixa presidencial de um presidente que não foi eleito diretamente pelo voto popular.

Michel Temer, que passará a faixa a Bolsonaro, chegou à Presidência da República devido ao impeachment de Dilma Rousseff, de quem foi vice por dois mandatos. Os outros foram Fernando Collor, que recebeu a faixa de José Sarney, vice que assumiu pela doença e morte de Tancredo Neves, e Fernando Henrique Cardoso, que a recebeu de Itamar Franco, vice que assumira o governo pelo impeachment de Collor.

Esses 33 anos contínuos de democracia brasileira, contados a partir da eleição indireta do civil Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 1985, encerrando 21 anos de ditadura militar, representam apenas cerca de um quarto de 129 anos da história republicana do país.

Depois da redemocratização, apenas dois presidentes eleitos pelo voto direto passaram a faixa presidencial para civis também eleitos pelo voto: Fernando Henrique e Lula. E apenas Lula fez o ciclo completo, transmitiu ao sucessor a faixa que recebera de outro civil, também eleito pelo voto direto.

Míriam Leitão: Liberais, fiéis e militares

- O Globo

O governo que toma posse hoje mistura liberais, evangélicos e militares. Para ter sucesso, precisa de unidade interno e escolha de foco

O governo Jair Bolsonaro, que toma posse hoje, é uma frente heterogênea de militares, liberais e evangélicos. O primeiro desafio será organizar as agendas. Na economia, o futuro ministro Paulo Guedes terá a oportunidade de implantar as bases da economia liberal. Guedes sempre culpou a social-democracia, rótulo no qual ele mistura PSDB e PT, como a responsável pelos problemas nacionais. Há grande expectativa em torno da sua gestão. Na teoria, liberais reduzem impostos. Como será na prática?

O desafio para ser liberal no Brasil agora é que há um grande rombo fiscal a vencer. Se reduzir impostos, o governo pode aprofundar o déficit. Ao mesmo tempo, há uma renúncia fiscal que supera R$ 300 bilhões ou 4% do PIB. São descontos para alguns setores e combatê-los seria a coisa certa a fazer, mas isso elevaria a carga tributária. O dilema é: como subir impostos, quando se deveria reduzi-los, e como reduzi-los se o rombo é enorme?

O Simples Nacional é a maior conta dessas isenções e foi formulado para ser um sistema tributário mais leve para empresas de faturamento reduzido. Em 2019, o gasto tributário com o Simples chegará a R$ 87 bilhões, 28% do gasto total, quase três vezes o orçamento do Bolsa Família. Numa conversa interna, Paulo Guedes admitiu que, como um liberal, terá muita dificuldade de subir impostos para pequenas empresas. O erro nesta ideia é que o teto para a inclusão no Simples subiu tanto que as empresas que se enquadram não são necessariamente pequenas. Outro programa caro é o da Zona Franca de Manaus, que tem forte lobby. Há também as deduções da pessoa física, mas isso aumentaria tributos para a classe média. Há as isenções para entidades sem fim lucrativo, mas nelas estão as igrejas que comandam uma ala do governo.

No mundo inteiro está havendo queda de tributos para empresas. E um ministério da Fazenda liberal não pode estar fora dessa onda, até porque o Brasil tem uma das maiores tributações do mundo sobre as companhias. A estratégia terá que ser ao mesmo tempo acabar com os privilégios de alguns setores, elevando os seus impostos, mas reduzir os tributos em geral para não começar subindo a carga tributária, o que seria constrangedor para um liberal. No meio dessa mudança é preciso tomar cuidado para não encolher as transferências para estados e municípios.

Bernardo Mello Franco: Bolsonaro precisa descer do palanque

- O Globo

Bolsonaro apostou na radicalização ideológica para se eleger. A estratégia deu certo, mas agora ele terá que tirar a fantasia de candidato e governar

Na véspera da posse, Jair Bolsonaro se lembrou de falar sobre educação. Pelo Twitter, ele disse que o Brasil está nas “piores condições” dos rankings mundiais de aprendizagem. O novo presidente acertou no problema, mas errou na solução. Em vez de propor medidas concretas, prometeu “combater o lixo marxista que se instalou nas instituições de ensino”.

Bolsonaro apostou na radicalização ideológica para se eleger. A estratégia deu certo, e a onda conservadora o empurrou até a rampa do Planalto. Hoje se abre uma nova etapa na história. O capitão assinará o termo de posse, receberá a faixa e terá que descer do palanque para governar.

Pelo visto, não será uma mudança simples. Nos dois meses de transição, o novo presidente se manteve em clima de campanha permanente. Ameaçou retaliar adversários políticos, reforçou ataques à imprensa e esbravejou contra inimigos imaginários, como a “ideologia de gênero” e o “globalismo”.

Na primeira visita ao Congresso depois da vitória, ele repetiu com os dedos o gesto de atirar. No front internacional, acirrou a tensão com países amigos e se aproximou de líderes de extrema direita como o húngaro Viktor Orbán e o israelense Benjamin Netanyahu, que vieram de longe para assistir à posse. Donald Trump também foi cortejado, mas preferiu jogar golfe em seu resort na Flórida. Para representá-lo, despachou o secretário Mike Pompeo.

Ricardo Noblat: Emergência em Brasília

- Blog do Noblat | Veja

A força da farda

Nem o golpe de 64 pôs nas ruas de Brasília tantos militares e agentes de segurança quanto a posse do capitão marcada para logo mais. Na vida real desde o último fim de semana, Brasília vive uma espécie de Estado de Emergência sem que a medida tenha sido oficialmente decretada.

A fé dos devotos de Bolsonaro passará por seu primeiro duro teste depois da eleição. Salvo um milagre, choverá forte em Brasília. Arrisca de a posse reunir mais militares do que paisanos.

Ana Carla Abrão*: Viventes

- O Estado de S.Paulo

Alagoas alcançou em 2018 a 1.ª posição no indicador de solidez fiscal do CLP

Vi da janela do táxi os vidros azuis do Palácio República dos Palmares. Estava recém-chegada em Maceió, vinda do litoral norte de Alagoas, lá onde as praias são das mais lindas do mundo. O motorista, que há quase uma hora falava de forma ininterrupta sobre as melhorias recentes no seu Estado, me perguntou se eu iria encontrar alguém importante ali. Já pagando a corrida, disse que sim, que iria almoçar com o governador Renan Filho. Ele não titubeou em me devolver parte do valor da corrida e me pediu, em troca do desconto, que desse um abraço no governador e lhe desejasse vida longa e muita saúde para continuar melhorando a vida dos alagoanos.

Alagoas é o Estado brasileiro com o pior índice de desenvolvimento humano (IDH). Tem problemas bem mais graves do que a grande maioria dos entes federados. Com poucas alternativas econômicas, além das usinas de açúcar centenárias – e endividadas –, e do turismo que desponta como atividade cada vez mais importante, sempre apresentou menor potencial econômico que os primos ricos da região, como Pernambuco ou Bahia. A criminalidade, como em tantos outros Estados do Nordeste, é elevada e tem como origem principal a rivalidade entre as facções criminosas de atuação nacional. A população é humilde e tem poucas oportunidades. A imensa maioria depende do setor público como empregador, como comprador ou como provedor de serviços ou de assistência social.

Partidos de oposição disputam protagonismo na esquerda

Para evitar fragmentação, siglas organizam criação de plataformas para a defesa de pautas específicas, como a manutenção de direitos

Ricardo Galhardo / O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - Ainda sob o impacto da eleição presidencial, os principais partidos de oposição ao governo Jair Bolsonaro (PSL) enfrentam uma disputa pela hegemonia no campo da esquerda. O PT, maior partido na Câmara com 56 deputados eleitos e força hegemônica na esquerda nas últimas três décadas, vai enfrentar a concorrência do bloco formado por PSB, PDT e PC do B que, juntos, têm 70 cadeiras. Correndo por fora, o PSOL, com 10 vagas, mantém a estratégia de independência e aposta na relação com grupos organizados de esquerda que estão fora dos partidos políticos.

Para evitar que essa disputa se transforme em fragmentação e enfraquecimento da oposição, os partidos negociam a criação de plataformas nas quais possam construir entendimentos sem a contaminação dos interesses eleitorais de cada agremiação. Uma delas é uma ampla frente democrática que pode incluir partidos para além da centro esquerda e setores da sociedade organizada em reação a possíveis retrocessos nos direitos civis durante o governo do PSL. Líderes dessa articulação, no entanto, acreditam que a iniciativa só vai vingar depois que Bolsonaro concretizar as primeiras promessas de campanha.

Outra plataforma, a ser lançada no dia 31 de janeiro, é o Observatório da Democracia, formado pelas fundações de seis partidos (PT, PSB, PDT, PC do B, PROS e Solidaridade) com o objetivo de estudar as primeiras medidas do governo Bolsonaro e apresentar propostas de atuação conjunta.

“É uma forma indireta de fazer oposição. As fundações não são exatamente como os partidos, não estão contaminadas pela disputa política direta. O esforço é de produzir elementos que sejam oferecidos aos partidos”, disse o presidente da Fundação Maurício Grabois (PC do B), Renato Rabelo.

Publicamente os partidos negam mas o pano de fundo dessa disputa são os projetos eleitorais de cada legenda. Em 2018 o PT chegou ao segundo turno, teve o apoio de Guilherme Boulos (PSOL - que pretende capitalizar a exposição conquistada na campanha), mas não engoliu a recusa de Ciro Gomes (PDT- que não esconde o desejo de liderar a nova esquerda) em apoiar Fernando Haddad.

“O PT hegemonizou a esquerda por três décadas, mas essa hegemonia está desgastada. É natural, portanto, que outros partidos e movimentos disputem maior protagonismo”, disse o presidente nacional do PSOL, Juliano Medeiros.

Segundo ele, “em alguns casos é evidente” o interesse eleitoral por trás de cada movimento partidário.

Articuladores do bloco PSB-PDT-PC do B negam que o objetivo seja isolar o PT e o PSOL com vistas à eleição de 2022.

“2022 está muito longe. O objetivo é não ter nenhuma força hegemônica. Vamos dialogar com o PT e o PSOL normalmente em todas votações”, disse o presidente nacional do PDT, Carlos Lupi.

Para o deputado Orlando Silva, líder do PC do B na Câmara, pelo tamanho do partido, a presença do PT no bloco desequilibraria as forças. Ele admitiu, no entanto, que se der certo a articulação pode se transformar em um projeto eleitoral por meio de uma federação de partidos.

Segundo Orlando, sem o risco da hegemonia petista o bloco oferece mais condições para atrair outros partidos como o Solidariedade, PV, Rede, PPS além de setores do PSDB, MDB e outras siglas que queiram se opor ao governo Bolosonaro.

Sem maioria no Congresso, Bolsonaro terá de negociar

Presidente eleito tem apoio declarado de 112 deputados na Câmara, número insuficiente para aprovar medidas importantes na Casa

Felipe Frazão | O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – O presidente eleito, Jair Bolsonaro, que toma posse nesta terça-feira, 1.º, em Brasília, terá na Câmara uma base inicial projetada de 112 deputados, uma das menores desde a redemocratização, formada pelo PSL, pelo PR e pelas legendas que declararam apoio no segundo turno das eleições: PTB, PSC e Patriota/PRP. O número, bem distante do mínimo necessário para aprovar, por exemplo, uma proposta de emenda à Constituição (PEC) – 308 votos – deixa o futuro governo dependente de uma negociação com os partidos do Centrão, bloco que soma 210 deputados, e com quem o presidente eleito já ensaia uma aproximação.

Para tentar aprovar reformas econômicas como a da Previdência (são necessários também 308 votos), Bolsonaro enfrentará a oposição de 150 deputados de partidos como PT, PSB, PDT, Solidariedade, PCdoB, PPL, PSOL e Rede – parte deles decidiu faltar à cerimônia de posse presidencial. O PT segue como maior partido na esquerda, com 56 eleitos, mas verá sua hegemonia desafiada pelo bloco de 70 deputados formado por PSB, PDT, PCdoB e PPL.

Para atingir maioria e a governabilidade, o futuro governo avalia fazer um gesto público: ceder as lideranças do governo na Câmara, no Senado e no Congresso a parlamentares de siglas que venham a integrar a base. Os futuros ministros que têm carreira na política já foram orientados a ir a campo na articulação e pedir apoio par os segmentos que representam, partidos a que são filiados e parlamentares com os quais têm proximidade.

Nas mãos do Congresso: Atrelado à política

Crescimento dependerá das negociações

Cássia Almeida e Daiane Costa | O Globo

A política vai ditar o ritmo da economia este ano, dizem analistas de bancos e de instituições. Como o equilíbrio fiscal —a meta estabelecida é de um rombo de R$ 139 bilhões nas contas públicas — depende principalmente da reforma da Previdência, a força política do novo governo vai determinar o humor dos agentes. Na média, espera-se alta de 2,55% este ano, mais que o dobro de 2018, quando devemos ter crescido pouco acima de 1%.

—O crescimento deste ano está atrelado à questão doméstica. Se o novo governo não conseguir fazer a reforma da Previdência necessária, voltamos para o buraco. Se conseguir uma reforma mais profunda, podemos crescer 3% sem muita dificuldade —diz o economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale, que prevê expansão de 2,2% do PIB.

Os analistas também condicionam o crescimento à mudança da regra atual de reajuste do salário mínimo, que estabelece inflação do ano anterior mais a alta do PIB de dois anos antes. Sem a reforma e contenção das altas do salário mínimo, a atividade deve seguir crescendo na casa do 1%, dizem economistas. A regra atual só vale até este ano. Apesar da previsibilidade que a regra permitiu, a principal preocupação de economistas é o peso do mínimo nas contas públicas, já que ele é o piso dos benefícios previdenciários.

— Essa regra tem um impacto fiscal forte, porque agrava o déficit da Previdência. Mas a mudança tem custo político muito alto, pois reduziria o reajuste real do salário mínimo. Será desafiador para o novo governo — diz Alessandra Ribeiro, economista da Tendências Consultoria.

Segundo o economista-chefe do Banco ABC, Luis Otávio Leal, o “Brasil está sempre no Dia da Marmota”:

—As dúvidas que temos em relação a 2019 são as mesmas que tínhamos para 2018. De novo o crescimento previsto, entre 2,5% e 3%, está condicionado a questões políticas. Temos todas as condições de crescer mais de 3%: os juros mais baixos da História, inflação sob controle e contas externas totalmente equacionadas, mas precisamos resolver a questão fiscal primeiro.

CONSUMO MAIOR
Para Leal, o novo governo tem uma “leitura correta do problema e da solução”. Resta saber se conseguirá implementá-la:

— Não há dúvidas sobre a competência da equipe econômica, mas ela depende da capacidade de articulação de Bolsonaro no Congresso, e isso é uma incógnita.

Vale, da MB Associados, tem dúvidas sobre o modelo de superministério da Economia:

— Paulo Guedes vai ficar assinando papel o dia inteiro, são muitas funções centralizadas nele. Pode atrasar mais do que ajudar. É uma ilusão que isso vai ajudar.

Os motores do PIB em 2019, dizem analistas, serão o consumo das famílias e os investimentos, seguidos pela agricultura, com previsão de safra recorde de grãos, e a indústria.

— Todo mundo está com o dedo no gatilho. Ao menor sinal de melhora, os investimentos vão acelerar. Não precisa necessariamente ser a aprovação da reforma, mas a indicação de que isso será possível, com proposta e estratégia boas —diz Leal.

Luciano Sobral, economista do Santander, observa que a melhora nas condições financeiras do país, com juros mais baixos, Bolsa em alta e câmbio mais valorizado, deve se manter em 2019, ajudando a impulsionar o crescimento:

—Não tem como ter melhora ampla se não for via consumo, que corresponde a quase 70% do PIB. Isso deve ocorrer porque o mercado de trabalho está melhorando, e os bancos
vão continuar ampliando as carteiras de crédito. As taxas de juros estão caindo, e os bancos privados estão com grande apetite para emprestar.

Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Ibre, da Fundação Getulio Vargas (FGV), afirma que é uma “otimista cautelosa”. Prevê alta do PIB de 2,4%. Sua preocupação também está na política:

— A viabilidade política das reformas não está clara. Se fosse pelo presidencialismo de coalizão, a reforma teria condições de ser aprovada. Mas, nesse modelo que o novo governo quer implantar, de negociar com as bancadas, não sabemos como vai ser.

Silvia afirma que uma reforma que vai cortar benefícios já é difícil de aprovar, ainda mais se pautas de costumes, como o projeto Escola sem Partido, forem a moeda de troca das bancadas temáticas para aprovar a reforma da Previdência:

—Há risco de mobilização da sociedade, greves, o que pode paralisar o Congresso.

Tiro no pé: Editorial |Folha de S. Paulo

No tema posse de armas, Bolsonaro parece mais movido a ideologia e propaganda do que a estudos

Durante a campanha eleitoral, o vitorioso Jair Bolsonaro (PSL) prometeu uma política mais permissiva quanto ao acesso da população a armas de fogo, sob a justificativa de “garantir o direito do cidadão à legítima defesa”.

Em duas mensagens publicadas no fim de semana, ele forneceu, pela primeira vez, indícios de como planeja encaminhar o tema. “Por decreto, pretendemos garantir a posse de arma de fogo para o cidadão sem antecedentes criminais, bem como tornar seu registro definitivo”, escreveu no sábado (29).

Hoje, as condições para alguém manter uma arma em casa —ter ocupação lícita e residência certa, não ter sido condenado nem responder a inquérito ou processo criminal, comprovar a capacidade técnica e psicológica para o uso do equipamento e demonstrar sua necessidade— precisam ser examinadas a cada cinco anos.

A alteração dessa regra por meio de um decreto, isto é, de um ato do Executivo, sem anuência do Legislativo, é potencialmente controversa e sujeita a contestação jurídica.

Talvez alertado dessa dificuldade, Bolsonaro relativizou, horas depois, sua primeira mensagem: “A expansão temporal será de intermediação do Executivo, entretanto outras formas de aperfeiçoamento dependem também do Congresso Nacional, cabendo o envolvimento de todos os interessados”.

Esperanças e anseios: Editorial | Folha de S. Paulo

Maioria dos brasileiros demanda serviços públicos essenciais

Uma expressiva maioria da população espera que Jair Bolsonaro (PSL)faça um governo ótimo ou bom. Estão assim confiantes 2 de cada 3 brasileiros, como registra levantamento do Datafolha. O presidente que assume nesta terça-feira (1º) foi eleito, recorde-se, com menos de metade dos votos dos que foram às urnas.

A expectativa de desempenho positivo às vésperas de uma troca de comando no Planalto costuma ser alta. Bolsonaro marca menos nesse quesito do que seus antecessores, em particular Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com 76% há 16 anos.

Ainda assim, o otimismo se mostra notável, da mesma proporção (65%) da crença na melhora da situação da economia, também segundo o instituto de pesquisa.

Questões econômicas, com efeito, não são as principais preocupações manifestadas pelos entrevistados, o que pode espantar num país onde a renda por habitante encolheu ao longo da década.

Não será surpresa, aliás, se as prioridades do eleitorado revelarem-se diferentes daquelas escolhidas pelo novo presidente.

Para 40% dos entrevistados, a saúde deveria ser o setor a receber maior atenção de Bolsonaro. Em segundo lugar, bem atrás, vem a educação, com 18% das menções, seguida da segurança pública, com 16% —e esta, para 46%, será a área em que a administração federal alcançará maior sucesso.

Chama a atenção que, após uma campanha na qual o vitorioso deu ênfase ao enfrentamento da corrupção, o tema tenha sido mencionado por apenas 3%.

Serviços públicos essenciais, portanto, ocupam o topo da lista de demandas dos brasileiros, o que permite qualificar o desafio apresentado ao mandatário.

O provimento de saúde, educação e segurança é tarefa a cargo, principalmente, de estados e municípios —boa parte dos quais mal têm recursos para pagar salários.

À União cabe, em geral, repassar verbas e coordenar normas e políticas. No primeiro caso, a oferta de recursos dependerá das reformas econômicas; no segundo, os planos do governo parecem, por ora ao menos, obscuros.

Avesso a debates e a entrevistas mais inquisitivas, Bolsonaro chega ao Planalto tendo apresentado pouco mais que bandeiras. Nesta segunda (31), por exemplo, prometeu “combater o lixo marxista” no ensino —o que nem de longe responde às carências com as quais se depara a grande maioria dos estudantes da rede pública.

A missão de Bolsonaro: Editorial | O Estado de S. Paulo

Jair Bolsonaro tomará posse hoje como presidente da República com a missão de promover as reformas das quais o Brasil depende para evitar o colapso das contas nacionais. Não se trata de uma escolha, tampouco de um projeto deste ou daquele partido, e sim de um imperativo nacional. É isso ou presidir um país ingovernável.

É certo que Bolsonaro foi eleito por uma fatia expressiva dos brasileiros que viram nele não o reformista de que o País tanto precisa, mas o homem que se comprometeu a varrer para o passado, quem sabe para o esquecimento, o petismo e seu terrível legado. O presidente cometerá um grave erro, no entanto, se limitar sua agenda e suas energias a essa faxina política e moral.

Pois não se pode ignorar que muitos eleitores de Bolsonaro esperam dele, antes de tudo, uma ação vigorosa e imediata contra o que enxergam como intolerável influência da esquerda na educação, nas artes e nos costumes. Na hipótese de ser levada a sério pelo presidente, essa visão tenderá a drenar forças políticas de um governo que deveria concentrar-se no essencial – e nem de longe o essencial, hoje, é fiscalizar o comportamento de professores, enquanto o sistema educacional continua em ruínas.

A encruzilhada em que o País se encontra não permite distrações desse tipo, úteis somente para quem pretende desviar a atenção dos reais e múltiplos problemas que devem ser enfrentados sem delongas. Se quiser realmente transformar o Brasil “em uma grande, livre e próspera nação”, como prometeu em seu discurso da vitória, Bolsonaro terá de usar seu imenso capital político para convencer os brasileiros, a começar de seus eleitores, de que o mais importante neste momento é concentrar esforços para reformar a Previdência e racionalizar drasticamente os gastos públicos, medidas que normalmente são impopulares. Sem isso, o País não atrairá os investimentos que se traduzem em empregos.

O legado de Michel Temer: Editorial | O Estado de S. Paulo

Jair Bolsonaro receberá a faixa presidencial das mãos do presidente Michel Temer numa situação muito mais confortável do que a deixada pela presidente cassada Dilma Rousseff ao seu sucessor. Temer demonstrou consciência de que seu papel na Presidência, em meio à grave crise política e econômica causada pela passagem do PT no poder, era sobretudo ser avalista de medidas duras destinadas a reequilibrar as contas públicas – cujo estado deplorável estava na essência da crise que derrubou Dilma. Esse comportamento do presidente, raro entre os atuais administradores públicos, deverá ser devidamente reconhecido no futuro, pois sua gestão terá sido uma das mais importantes – e, dadas as circunstâncias, uma das mais competentes – da história recente do País.

O presidente não hesitou em enfrentar uma oposição feroz para fazer aprovar a impopular emenda constitucional que instituiu um teto para os gastos federais, hoje um dos pilares da responsabilidade fiscal. Graças a essa medida, há hoje um mínimo de racionalidade no manejo das finanças públicas, adequando despesas e receitas. Michel Temer soube articular apoio no Congresso mesmo diante de uma vigorosa campanha de desinformação liderada pelo PT para desmoralizar esse urgente esforço fiscal.

O mesmo empenho de Temer se verificou na aprovação de outra medida saneadora e igualmente torpedeada pela oposição, a reforma trabalhista, por meio da qual se desfizeram as amarras legais que transformavam os contratos de trabalho em uma barafunda de alíneas, a título de preservar “direitos” que, no limite, inibiam a geração de empregos formais. O trabalhador deixou de ser tratado como incapaz de defender seus interesses perante o empregador – o que, considerando-se a legislação brasileira, excessivamente paternalista, foi um espantoso avanço. Ademais, ao acabar com o caráter compulsório da contribuição sindical, a reforma de Temer obrigou os sindicatos a voltarem a defender os interesses de seus filiados, que lhes pagam mensalidade, e não dos partidos políticos aos quais serviam de braço.

Infelizmente, Temer não foi bem-sucedido quando tentou colocar em votação aquela que seria a mais importante das reformas, a da Previdência. Seu esforço foi sabotado quando a Procuradoria-Geral da República apresentou denúncias de corrupção contra o presidente – denúncias ineptas, como logo ficaria claro, baseadas em um flagrante armado pelo empresário Joesley Batista. Vendo seu apoio político se esvair em razão do falso escândalo, e ciente de que uma reforma da Previdência, impopular por natureza, jamais seria aprovada naquelas condições, Temer recuou – mas sempre deixou claro a todos que essa reforma teria de ser feita o quanto antes.

Uma incógnita diante de grandes obstáculos: Editorial | O Globo

Aumento do fluxo dos royalties do petróleo é providencial ajuda, mas encobre a real situação do estado

O presidente Jair Bolsonaro assume uma carga pesada de problemas, mas, em comparação com chefes estaduais do Executivo, ele tem uma certa margem institucional de manobra e por isso uma possibilidade maior de acerto, apesar de vacilações preocupantes. Como sobre o melhor caminho a seguir na reforma da Previdência. E há governadores da nova safra que titubeiam, por exemplo, sobre temas-chave como privatização. Uma vantagem do Executivo federal é poder se endividar pela emissão de títulos. Na verdade, uma droga que vicia e pode levar à morte. Mas é o que permite ao Tesouro pagar a conta de juros da dívida pública, porém isso tem limites.

Um caso a acompanhar de perto é o do Rio de Janeiro, segundo estado da Federação. Não apenas pelo tamanho, mas principalmente pela folha corrida do governador Wilson Witzel, do PSC, neófito na vida pública — o que não é em si um problema —, beneficiado por ter se ligado à marca vitoriosa de Bolsonaro, tendo surfado no estado a onda de anseios pelo novo na política, dada a desilusão com a era Cabral e a tudo que se ligou a ela. Compreensível, o sentido do voto dado ao ex-fuzileiro naval e ex-juiz Witzel.

Trata-se de saber se a administração da incógnita Witzel estará à altura das dificuldades fluminenses. Números frios não refletem por completo o quadro panorâmico da crise do estado, mas indicam as dificuldades do governo. O desemprego e a evolução do PIB demonstram um comportamento diverso ao da média do Brasil, nos últimos tempos: pior no primeiro, melhor no segundo ( gráficos ). Em 2017, foi assinado o acordo com o governo federal em torno do Programa de Recuperação Fiscal, que regularizou salários e benefícios dos servidores, e ainda começou o efeito positivo do aumento do fluxo dos royalties do petróleo, não só devido à alta do preço internacional do hidrocarboneto, depois contida, mas pelo aumento da produção interna, com a ajuda de novas áreas do pré-sal. Só de 2016 para 2017, os royalties pouco mais que dobraram (108%, de R$ 3,4 bilhões para R$ 7,1 bilhões).

As estatísticas indicam contenção relativa de despesas — embora o Tesouro Nacional faça ressalvas a números sobre gastos com pessoal, sob suspeita de maquiagem —, mas a dívida é ascendente, e há um número robusto de servidores ativos e inativos. Estes tendem a pressionar cada vez mais as despesas públicas, pela lógica incontornável da demografia brasileira e dos defeitos estruturais da regulação das aposentadorias do funcionalismo brasileiro.

Fernando Pessoa: Ano Novo

Ficção de que começa alguma coisa!
Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.
Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento.