quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Opinião do dia - Luiz Werneck Vianna*

Delenda a Carta de 88, essas as palavras-chave que singularizam a empreitada em que estão envolvidos e que estão na base dos seus cálculos estratégicos para o futuro do país, pois é nela que identificam o maior obstáculo a seus desígnios. Não por acaso, uma das principais peças de sustentação política do atual governo se radica no agronegócio com as ambições territorialistas que o move. O culto ao americanismo por aqui não passa de um pasticho, uma vez que não se pode ignorar que a força do capitalismo nos EUA derivou em boa parte da conquista do Oeste como terra livre à ocupação, uma fronteira aberta para a expansão que não conhecemos.

A canhestra tentativa ora em curso de nos imprimir uma via à americana de sociedade, diante da natureza da nossa história e das nossas instituições, está destinada ao malogro se obedecer aos cânones normais. Se, no entanto, recorrer a outros expedientes, a trágica fábula do filme Bacurau, por mais enigmática que seja, talvez se torne uma infausta realidade que se imponha a vida dos brasileiros.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio. ‘A hipótese Bacurau’, Revista IHU On-Line e Blog Democracia Política e novo Reformismo, 8/10/2019

Merval Pereira – o Dito pelo não dito

- O Globo

Depois de receber um cartão vermelho simbólico do presidente do PSL, Luciano Bivar, teve que recuar

O presidente Bolsonaro descobriu, nesse episódio da briga com a direção do PSL, que pode muito, mas não pode tudo. Deu uma de Jânio, ameaçou sair do partido pelo qual se elegeu, e deu com os burros n’água. Ficou o dito pelo não dito.

Depois de receber um cartão vermelho simbólico do presidente do PSL, Luciano Bivar, teve que recuar. Em entrevista ao site O Antagonista, o presidente, apesar de reiterar as críticas, deixou escapar o centro das divergências: “Eu não quero esvaziar o partido. Quero que funcione. O PSL caiu do céu para muita gente, inclusive para o Bivar. O que faço é uma reclamação do bem. O partido tem que funcionar, tem que ter a verba distribuída, buscar solucionar os problemas nos diretórios. Todo partido tem problema. O presidente, o tesoureiro, eles têm que solucionar isso.”

Bolsonaro tem razão quando diz que “o partido caiu do céu para muita gente, inclusive para o Bivar”. Por sua causa, o PSL recebeu 10,8 milhões de votos para deputado federal a mais nessas eleições do que em 2014.

Na última disputa para a Câmara dos Deputados, sem Bolsonaro, o partido tivera apenas 808 mil votos. Já em 2018, foram 11,6 milhões. Por isso, o partido terá nada menos que R$ 359 milhões em 2020, com os fundos Partidário e Eleitoral. Mais que o PT, (R$ 350 milhões) e o MDB (R$ 246 milhões).

A engorda do Fundo Partidário se deveu a Eduardo Bolsonaro, eleito com mais de 1,8 milhão de votos, o deputado federal mais votado da história do Brasil. Superou Éneas (1.573.642 em 2002 pelo Prona) e Celso Russomanno (1.524.361 votos em 2014). A candidata de primeiro mandato Joice Hasselmann, também do PSL, foi outra campeã de votos em São Paulo, com mais de 1 milhão de votos, superando Tiririca, do PR, que teve 1.016.796 votos em 2014, mas caiu para cerca de 500 mil votos em 2018.

Míriam Leitão - O presidente fabrica crises

- O Globo

Crise com o PSL, como várias outras crises deste governo, foi fabricada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro

Com o PSL e os militares o presidente Jair Bolsonaro organizou seu governo. Nove meses depois, ele já demitiu vários militares, alguns em situação humilhante, e atacou o PSL, pedindo que o esquecesse e afirmando que seu presidente está “queimado pra caramba”. Analistas achavam que ele, após a posse, trabalharia para consolidar sua base política atraindo mais quadros para o PSL e que, na eleição municipal do ano que vem, ele tentaria dar ao partido capilaridade para sustentar seu projeto de reeleição.

Na avaliação do cientista político Jairo Nicolau, o presidente Jair Bolsonaro está fazendo um movimento irracional da perspectiva das suas ambições políticas. Saindo do PSL ele abre mão da bancada, do fundo eleitoral e de horário de televisão nas eleições municipais, momento que seria estratégico para o partido:

— Seria a hora mais lógica de ele consolidar o partido de extrema-direita para apoiar seu projeto. Eles não gostam que se defina o grupo político como de extrema-direita, mas essa é a definição correta. O PSL terá um volume grande de recursos através dos fundos eleitorais, mais de R$ 300 milhões. E para uma eleição municipal será necessário ter tempo de TV e dinheiro.

A possibilidade de mudança partidária sem risco de perda do mandato se dá em duas situações. Primeiro, se uma nova legenda for criada. Segundo, na próxima janela partidária, o que só ocorrerá em 2022, seis meses antes das eleições. Um partido novo, como esse, o Conservadores, não terá recursos porque o dinheiro é distribuído conforme o número de parlamentares que elegeu na última eleição. O Patriotas terá uma fração pequena dos fundos eleitoral e partidário:

Bernardo Mello Franco - Lula aos olhos de FH

- O Globo

Nos últimos “Diários da Presidência”, FH expõe visões contraditórias sobre Lula. O tucano sofreu com os ataques do petista, mas ficou satisfeito com a civilidade da transição

Vem aí o último volume dos “Diários da Presidência” de Fernando Henrique Cardoso. Os principais temas do livro são a eleição de 2002 e a transição para a posse de Lula. Foi um processo exemplar, que lembra como a política brasileira já soube ser civilizada.

No penúltimo dia de governo, os rivais históricos brindaram juntos num churrasco na Granja do Torto. Dias antes, o neto do tucano foi convidado para jogar bola com o neto do petista. “Esse é o grau de amizade”, anotou FH, satisfeito com o clima de reconciliação.

Nem sempre foi assim. No calor da disputa, o sociólogo sofreu com os ataques do operário. “O Lula é realmente um despreparado, além de ser grosseiro”, desabafou, em outubro de 2001. “Ele é um clown. Foi um líder e hoje é uma réplica de si mesmo, e de quinta categoria. É patético”, esbravejou, seis meses antes.

Ascânio Seleme - As manifs vêm aí

- O Globo

Que ninguém se espante se o próximo ano for repleto de manifestações

Normalmente eles têm razão. Não apenas porque reúnem coragem e saem de casa para dizer o que pensam, o que já é bastante, mas porque quase sempre estão refletindo um sentimento que assalta o coração da maioria. Os manifestantes que ocupam as ruas e que gritam e se batem em favor de temas que dizem respeito à vida dos cidadãos são muitas vezes ingênuos, e em outras cumprem apenas um ritual juvenil. Mas estão ali, enfrentando o Estado e a sua polícia, porque acreditam que, se vencerem, todos ganharão. Não falo dos manifestantes de corporações, que apenas sopram a brasa debaixo da sua sardinha. Me refiro aos que gritam pela floresta, pelos direitos civis, em favor das mulheres, dos gays, dos negros, da liberdade de expressão, da democracia.

Não, não me refiro aos manifestantes que fazem atos de política partidária, que se esgoelam porque perderam o poder numa eleição ou porque não se conformam com o programa de governo de quem a venceu. Estou tratando dos que bloqueiam as ruas em protesto pelo aumento de 14 centavos na passagem dos ônibus, como se viu em 2013, mas não dos que pegam carona nas mobilizações para apresentar reclames próprios, corporativos, partidários ou sindicais. São homens e mulheres que defendem minorias e causas ignoradas pelo Estado e esquecidas pela sociedade. São jovens, alguns de idade, todos de espírito. Estou falando de pessoas de muito valor.

Renato Galeno* - O chanceler e a gargalhada de Diógenes

- O Globo

Wittgenstein impressionou a civilização ocidental com sua “virada linguística” e a descrição de como é preciso um critério externo para verificar se o que eu falo faz sentido. Se não, “acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra”, escreveu ele. Imaginar ter asas me permitiria pular pela janela e voar. Para nós, brasileiros, parece óbvio, pois Machado nos mostrou isso em “O alienista” — o louco acha que os demais são loucos e só ele é são. Então vi o discurso do chanceler Ernesto Araújo na Fundação Heritage, nos EUA, mês passado.

O ministro do Exterior do Brasil afirma que o governo do qual participa integra uma “revolta contra a ideologia”. E tentou descrever e atacar o que chama de “globalismo”, “climatismo”, “ideologia de gênero” e “oicofobia” (o “ódio à sua própria nação”, segundo ele). O que conseguiu foi escancarar as contradições lógicas, a ignorância e a desonestidade intelectual do movimento obscurantista que cresce no mundo.

O discurso é um ataque ao que chama de ideologia. Afirma que o “marxismo cultural” (que não define —provavelmente por este conceito não fazer sentido) está fazendo “nossa civilização” perder os símbolos, aquilo “que nos guia de cima”. As citações de pensadores se encaixam em três categorias. Ou são vazias (só nomes citados, como Lukács, Rosa Luxemburgo ou Negri; ou sem sentido; ou mal interpretadas, e aqui falo de Gramsci.

Acho que o fetiche que os seguidores do astrólogo sentem pelo pensador italiano perseguido pelo fascismo é um ato falho, pois o chanceler tenta usar métodos “gramscianos” para travar sua “guerra cultural”, como (cito agora Gramsci) “não se cansar jamais de repetir os próprios argumentos” e ter um “grande filósofo individual” para pregar a “filosofia dos não filósofos, desagregada, incoerente, inconsequente, conforme à posição social e cultural das multidões das quais ele é a filosofia”.

Após retirar de contexto Brecht, Foucault e Lacan, Araújo chega à espantosa conclusão de que “se você tira do homem a dimensão simbólica, onde Deus habita, eu acho, nem comer carne é permitido”. Isso depois de comparar possíveis sanções comerciais ao Brasil, devido à destruição da Amazônia, às execuções ordenadas por Stalin. É a invenção do stalinismo vegano.

Como ele não percebe que aceitar qualquer estrutura simbólica é adotar uma ideologia (um conjunto de crenças normativas)? Ele afirmou que, nas eleições de 2018, o único candidato que acreditava em “liberdade, nacionalidade e Deus” era Bolsonaro — a liberdade que comemora a ditadura e defende a tortura, o “Deus acima de todos” num Estado laico e plural. Para o filósofo amador Araújo (a moda pegou), o nacionalismo é o que evita o globalismo, que é um “mundo sem símbolos”. Ora, mas o nacionalismo, obviamente, é uma ideologia!

O principal ataque do ministro foi ao que chamou de “ideologia da mudança climática, ou climatismo”. Sem perceber o erro infantil que cometia, leu um trecho do último relatório do painel da ONU sobre o tema: há uma “confiança média” na relação direta entre o aquecimento global e extremos climáticos. Ele acha que isso indica só uma confiança média no elemento humano no aquecimento global. Mas o que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas diz é que não há, ainda, como ter certeza da relação direta entre o consensual aquecimento global provocado pelas ações humanas com o aumento da intensidade de furacões, por exemplo. É a desonestidade intelectual (ele negou várias vezes nos EUA os dados de satélites sobre os incêndios, os maiores desde 2010) encontrando a ignorância.

Refugiei-me, como sempre faço diante de ideias sem sentido, em Diógenes, o filósofo grego que se despiu de todas as não naturais convenções sociais — das ideologias. Na minha imaginação, perguntei a ele o que achava do discurso. Não consegui resposta, pois ele apenas gargalhava.

*Renato Galeno é professor de Relações Internacionais do Ibmec-RJ

Luiz Carlos Azedo - A justa causa de Bolsonaro

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“O presidente do PSL, Luciano Bivar (PE), admitiu o afastamento de Bolsonaro da legenda e disse que não sabe o que se passa na cabeça do presidente”

O presidente Jair Bolsonaro decidiu deixar o PSL e liderar uma debandada na legenda com um argumento que pode precipitar o troca-troca generalizado de partidos no Congresso, principalmente na Câmara: falta de transparência na gestão das contas partidárias. A tese foi defendida ontem pelo ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Admar Gonzaga, uma espécie de conselheiro jurídico eleitoral do presidente da República, deputados da legenda e sua advogada Karina Kufa, num encontro com Bolsonaro.

O encontro praticamente consolidou a ruptura com o presidente do PSL, Luciano Bivar (PE), que admitiu o afastamento de Bolsonaro da legenda e disse que não sabe o que se passa na cabeça do presidente da República. “O que pretendemos é viabilizar o país. Não vai alterar nada se Bolsonaro sair, seguiremos apoiando medidas fundamentais. A declaração de ontem foi terminal, ele disse que está afastado. Não estamos em grêmio estudantil. Ele pode levar tudo do partido, só não pode levar a dignidade, o sentimento liberal que temos e o compromisso com o combate à corrupção”, arrematou Bivar

A corda arrebentou na terça-feira, quando Bolsonaro disse a um apoiador que se apresentava como pré-candidato do PSL no Recife (PE) que Bivar estava “queimado” e que era melhor ele “esquecer o PSL”. Diante da situação, cresceram os rumores no Congresso de que Bolsonaro deixaria a legenda, o que foi praticamente confirmado ontem à tarde, depois da reunião do presidente da República com deputados aliados, o ex-ministro do TSE e a advogada.

Karina Kufa, na saída do encontro, disse que o principal problema era a transparência em relação ao Fundo Partidário e ao Fundo Eleitoral. “A gente tem diversos deputados que não têm informação nenhuma, não têm acesso às contas. E é isso que foi pleiteado. Se tem um partido, o partido é de todos, e os deputados têm que ter acesso. Não se pode ter votações sem qualquer participação dos próprios parlamentares”, disse.

Recurso público
O ex-ministro Gonzaga corroborou esse diagnóstico e avançou uma tese jurídica segundo a qual os parlamentares da legenda poderão deixar o PFL, fora da janela de transferência partidária, por justa causa. A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral reconhece como justa causa o descumprimento reiterado do manifesto do partido, questões de ordem pessoais, algum tipo de perseguição, como retirar deputados de comissões e ameaças de expulsão. “Justa causa você tem quando não tem transparência com os recursos do fundo partidário, que é recurso público, que é entregue ao partido em face dos votos dedicados aos parlamentares pelos eleitores do Brasil”, afirmou Gonzaga.

Ricardo Noblat - Partido de Bolsonaro em pé de guerra

- Blog do Noblat | Veja

Nunca mais o PSL será o mesmo
Passava um pouco das 11h de ontem quando a reunião da Comissão de Tributação e Finanças da Câmara foi interrompida por uma voz de choro. “Acabei de ser destituída”, anunciou a deputada federal Alê Silva (PSL-MG) que desde fevereiro último sempre falou ali em nome do governo de Jair Bolsonaro.

Fez-se silêncio na ampla sala onde havia dezenas de deputados. Aos prantos, Alê contou que fora informada por telefone que sua missão estava encerrada. E que em breve a direção do PSL indicaria outro nome para substitui-la. Foi a primeira baixa na guerra deflagrada por Bolsonaro dentro do partido pelo qual se elegeu. Haverá outras.

“Esse partido só quer dinheiro e que se dane o povo brasileiro. Partido pequeno, nanico, que chegou aonde chegou por causa de Bolsonaro”, prosseguiu Alê no seu desabafo. Mais tarde, no plenário da Câmara, e dessa vez sem chorar, ela ainda discursaria para alguns dos seus colegas que a procuraram solidários:

“Sabe por que o PSL me excluiu? Porque eu sou inteligente, porque eu entendo de contas públicas. Por que para mim o interesse da população brasileira está acima de qualquer interesse de oligarquia política ou econômica. Foi essa a razão pela qual eles me excluíram. Joguem-me aos lobos que eu volto liderando a matilha”.

Alê é bolsonarista de raiz. Está disposta a ficar no PSL se Bolsonaro ficar ou sair junto com ele para outro partido. Quem a tirou da Comissão, despojando-a dos poderes que tinha, foi o deputado Luciano Bivar (PE), presidente do PSL, e uma espécie de dono do partido há algumas décadas. Nada de pessoal contra Alê.

Bivar, apenas, aceitou pelejar com Bolsonaro pelo controle do PSL. Não fez sequer um gesto para impedir que Bolsonaro deixe o partido se esse for mesmo o seu desejo. E começou a retaliar disparando na direção dos deputados do PSL mais fiéis a Bolsonaro. Parece convencido de que assim a maioria ficará ao seu lado.

A exemplo de outros partidos, o PSL está organizado nos Estados por meio de comissões provisórias, não eleitas, mas indicadas pela direção nacional. Por provisórias, podem ser dissolvidas de um momento para o outro, afetando diretamente os interesses de detentores de mandatos. Aí reside parte da força de Bivar.

Outra parte reside na grana. Bivar é dono da chave do tesouro do partido, alimentado por dinheiro dos fundos partidário e eleitoral. Mensalmente, o PSL embolsa algo entre R$ 12 milhões a R$ 15 milhões. Dinheiro vivo. O partido pode fazer com ele o que quiser sem ter que dar muitas satisfações à Justiça Eleitoral.

Bolsonaro e seus filhos estão de olho nesse dinheiro. E como Bivar não abre mão de administrá-lo, a nova família imperial brasileira estuda meios e modos de se transferir para outro partido onde de fato possa mandar e desfrutar das benesses de quem manda. A saída não será tão simples e demandará algum tempo.

O partido de destino terá de ser um ainda em fase de construção. Esse partido terá de se fundir a outro dando origem a um partido realmente novo. Só então os que quiserem acompanhar os Bolsonaros na aventura poderão fazê-lo sem risco de perder os mandatos, e levando parte da grana que hoje é do PSL.

(De volta ao ar, o programa Topa Tudo por Dinheiro.)

Nem um tostão a menos

Maria Cristina Fernandes - Rodrigo Maia IV

- Valor Econômico

Equação de poder articulada pelo virtual primeiro-ministro está montada para torná-lo imprescindível tanto para o presidente quanto para quem almeja sucedê-lo

Feito réu pela segunda vez no Supremo Tribunal Federal, o deputado federal Arthur Lira, líder do PP na Câmara dos Deputados, terá que travar uma batalha jurídica para se viabilizar como candidato à sucessão do presidente da Casa, Rodrigo Maia. No cargo, o deputado ocuparia o segundo lugar na linha sucessória. Em 2016, ao se debruçar sobre a permanência na Presidência do Senado de um Renan Calheiros (MDB-AL) tornado réu, o Supremo Tribunal Federal optou por uma jurisprudência criativa, mantendo-o no cargo mas excluindo-o da linha sucessória.

Lira partilha com seu conterrâneo e adversário local a mesma obsessão, que o senador Cid Gomes (PDT-CE) prefere chamar de achaque, pela ocupação de espaços na máquina pública que lhe garantam a representação de interesses. Ante um presidente da Câmara cortejado nos principais salões da República como um primeiro-ministro, Lira cultiva a imagem de um despachante das demandas da Casa, rivalidade que levou Maia a franquear espaços ao correligionário de Lira, o deputado Aguinaldo Ribeiro (PB), e ao vice-presidente da mesa, deputado Marcos Pereira (PRB-SP), ambos ex-ministros, o primeiro do governo Dilma Rousseff e o segundo, da gestão Michel Temer.

Em comum, os três têm a ambição de suceder a Rodrigo Maia e uma folha de serviços prestados na interlocução de suas bancadas com o Executivo. Partilham, porém, de rolos no Judiciário que podem vir a inviabilizá-los para o cargo. A dificuldade de suas candidaturas pode abrir espaço para a Câmara abrigar um movimento que começa a ser gestado fora do Legislativo para pavimentar o quarto mandato de Maia na Presidência da Câmara.

Não será fácil emplacá-lo. Tanto que o presidente da Câmara não admite, nem mesmo, falar sobre o assunto. “Meu mandato termina no dia 31 de janeiro de 2021”, limitou-se a dizer por mensagem. O regimento da Câmara dos Deputados proíbe a recondução para o cargo durante a mesma legislatura. O veto levou o Supremo a ter que se pronunciar sobre o tema quando Maia, que havia assumido o cargo em substituição ao ex-deputado Eduardo Cunha, de quem era vice, disputou a recondução em fevereiro de 2017.

O ministro Celso de Mello deliberou que a decisão caberia à Câmara e, na Casa, prevaleceu a tese de Maia de que não se tratava de uma reeleição porque ocupara um mandato-tampão. Finda a legislatura, o deputado voltaria a se recandidatar, desta vez sem celeumas, ao cargo, em fevereiro deste ano. Mais do que avalista do ímpeto reformista da agenda do ministro Paulo Guedes na Câmara, Maia assumiu como titular de uma pauta que abriga demandas empresariais, financeiras, federativas e até sindicais. É depositário ainda da confiança de movimentos de todos os matizes para que permaneça em banho-maria a pauta de costumes projetada pela eleição de Bolsonaro.

Ribamar Oliveira - LDO proíbe cortar verbas da Educação

- Valor Econômico

Orçamento da União está cada vez mais engessado

Caminhando em direção contrária à política dos “três Ds” formulada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, os deputados e senadores acabam de tornar ainda mais difícil a execução do Orçamento da União pelo governo. O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para 2020, aprovado ontem pelo Congresso Nacional, ampliou de 63 para 88 o número de ações e programas que não podem sofrer contingenciamento em suas dotações.

Os parlamentares fizeram dois movimentos nesta área. Eles excluíram do contingenciamento as despesas com todas as ações vinculadas à função Educação. Ou seja, não serão apenas as dotações do Ministério da Educação que estarão preservadas em 2020, mas todas as numerosas ações na área educacional realizadas por vários ministérios.

A proibição da LDO ocorre depois das fortes reações populares contra o contingenciamento realizado neste ano no Ministério da Educação, que teve suas dotações reduzidas, inicialmente, em R$ 5,8 bilhões. Posteriormente, as verbas foram parcialmente repostas. No fim do mês passado, o governo anunciou o desbloqueio de R$ 1,99 bilhão para o ministério.

Maria Hermínia Tavares de Almeida* - Cheiro de gás

- Folha de S. Paulo

Medidas do governo são como o gás que escapa lentamente de um vazamento

Solange M. T. Hernandes foi lembrada por mais de um comentarista político nos últimos dias. Funcionária da Polícia Federal, ficou tão conhecida nos anos 1970 que seu nome virou sinônimo da censura a jornais, revistas, livros, filmes, peças, músicas, noticiários e novelas, amplamente praticada pelo regime militar. Sua tesoura inoxidável mutilava não só manifestações de oposição, mas tudo aquilo que ela considerasse atentatório à moral e aos bons costumes.

Estaríamos assistindo à volta dos tristes tempos de dona Solange? É o que se perguntam todos quantos se preocupam com a escalada dos destemperos verbais do presidente Bolsonaro e de seus subalternos contra a imprensa e artistas conhecidos; a ameaça de impor filtro à produção cinematográfica; as demissões em organismos ligados ao Ministério da Cultura; e a suspensão de financiamentos de empresas públicas a atividades culturais se os beneficiados tiverem o perfil “errado”.

Há quem sustente que, a despeito do linguajar chulo do presidente, apenas estaríamos diante de mudanças esperáveis de um governo de extrema direita eleito segundos as regras do jogo: governo de extrema direita, políticas culturais de extrema direita, executadas por funcionários de mesma orientação. Bolsonaro retruca que não se trata de censura, mas de defesa dos valores cristãos compartilhados por faixas extensas da população —das quais se imagina representante.

Igor Gielow - Radicalização de Bolsonaro e crise fiscal sugerem impasse perigoso

- Folha de S. Paulo

Medidas podem levar a ruas indóceis e a Congresso mudo, estimulando autoritarismos

Nas eleições de 1990, Fernando Collor de Mello já não gozava da popularidade que o havia levado ao Planalto, mas ainda assim a sigla hospedeira de sua aventura presidencial, o PRN, viu eleitos 40 deputados federais.

Não era assim uma potência, ante os gigantes PMDB (108 deputados) e PFL (83 eleitos), mas uma agremiação robusta do segundo escalão. O partido reclamava mais espaço no governo Collor.

Quatro anos depois, escorraçado do poder com o presidente, o PRN estava reduzido a quatro deputados. Logo depois, despareceu, virando mais um zumbi nanico a assombrar a vida política —hoje atende pelo nome de Partido Trabalhista Cristão e tem dois representantes na Câmara.

O PSL, outro nanico que abrigou uma improvável campanha presidencial em 2018 e virou uma das maiores sigla da Casa, parece que seguirá o rumo do PRN. A diferença é que seu comensal, Jair Bolsonaro, será o responsável pelo movimento sem ter caído em desgraça como Collor.

Para tentar isolar-se dos rolos do laranjal do PSL, Bolsonaro deu a senha ao dizer nesta terça (8) para um apoiador que ele “esquecesse” a sigla. O tamanho da sangria nos 53 deputados, que de resto se comportam como se estivessem num grupo de WhatsApp e não um partido, é algo a ver.

Mariliz Pereira Jorge - O barraqueiro

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro acha que não precisa de ninguém; com esse raciocínio, Collor e Dilma foram apeados do cargo

Já não se pode dizer que Jair Bolsonaro seja um total incompetente. Impressiona a habilidade que tem para arranjar confusão. Nem nos piores reality shows da TV, nem entre as celebridades mais desbocadas vimos alguém tão barraqueiro quanto o presidente da República. Não há semana sem que ele destrate, ofenda, provoque, desdenhe, minta sobre quem quer que apareça em sua linha de tiro. Já sobrou até para a "porra da árvore".

Houve quem chiasse quando escrevi que teríamos quatro anos de zona. Estava errada. Como dizem por aí, a expectativa era ruim, mas puta merda. Zona é pouco para essa realidade distópica, para a balbúrdia que é este governo, para o comportamento abjeto desse presidente.

Bolsonaro age como sua natureza manda, como um ditadorzinho que acha que pode fazer, mandar, falar o que pensa, como se estivesse com a reeleição garantida e pudesse fazer do país um quintal de sua estupidez e falta de educação.

Ninguém é poupado, de aliados, adversários políticos, líderes estrangeiros, instituições, mulher de presidente até a mãe de um cidadão entrou em sua rota de ataque.

A lista é grande: Bebianno, Bachellet, Macron, ONU, Raoni, Moro, Holanda, Alemanha, índios, nordestinos, Rodrigo Maia, toda a esquerda, João Doria, Luciano Huck, Globo, Folha, João Gilberto, Inpe, Ibama, militares, Polícia Federal, mortos pela ditadura. Ele consegue ofender a memória de gente morta.

Bruno Boghossian – Trocando em miúdos

- Folha de S. Paulo

Presidente não consegue dissociar administração pública de suas paixões ideológicas

Em 30 de maio de 2010, Ferreira Gullar fez uma de suas críticas ácidas ao então presidente Lula durante uma entrevista à Folha. "O Lula é um farsante, não merece confiança", disparou. No dia seguinte, o escritor foi anunciado vencedor do Prêmio Camões, entregue pelos governos do Brasil e de Portugal.

O petista assinou o diploma que foi entregue a Gullar meses depois. O poeta recebeu um cheque de € 100 mil e continuou fazendo comentários sobre política. Declarou voto em José Serra e chamou Lula de "uma pessoa desonesta, um demagogo".

Jair Bolsonaro mostra que não consegue dissociar atos de governo de suas paixões ideológicas. Ao fazer mistério sobre a assinatura do certificado do Prêmio Camões concedido a Chico Buarque neste ano, ele submete o governo a suas vontades pessoais mais mesquinhas.

A ala radical do Planalto pressiona Bolsonaro a não incluir seu nome no documento, já que o músico fez campanha para Fernando Haddad e visitou Lula na prisão. Na terça (8), o presidente quis fazer piada: "Até 31 de dezembro de 2026 eu assino".

Chico respondeu nas redes sociais, em tom político. "A não assinatura do Bolsonaro no diploma é para mim um segundo Prêmio Camões."

Em maio, quando Chico foi escolhido, o ministro Osmar Terra ficou furioso e quase demitiu o secretário de Cultura, Henrique Pires. Ele deixou o cargo em agosto, devido a outras interferências em sua área.

A cegueira política do governo neste caso é a mesma que faz com que Bolsonaro se cale diante da morte de João Gilberto, mas homenageie o artista MC Reaça, que apoiou sua campanha. Ele se suicidou em junho. Uma mulher diz que foi espancada por ele momentos antes.

Na cerimônia do Camões de 2016, o premiado Raduan Nassar disse que Michel Temer era "repressor" e havia praticado um golpe. Houve bate-boca entre o público e o ministro Roberto Freire, que pontuou: "Quem dá prêmio a adversário político não é ditadura". Bolsonaro gosta de dar sinais no sentido contrário.

Uirá Machado - Tortura não é besteira

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro extrapola os limites ao defender sevícias como método de disciplina

Como em tantas outras ocasiões, na terça (8) Bolsonaro encerrou uma entrevista por não ter gostado de uma pergunta que lhe foi feita. "Parem de perguntar besteira", disse.

O comportamento em si, pela reiteração, já não surpreende ninguém, mas desta vez algo chamou a atenção. A "besteira" a que ele se referia era um documento do Ministério Público Federal sobre denúncias de tortura em presídios do Pará.

Baseado em fotos e vídeos, além de depoimentos de ex-detentos, parentes dos presos, funcionários do sistema carcerário e representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, o relatório se alonga por 158 páginas.

Aponta práticas como empalamento com cabo de espingarda, perfuração dos pés com pregos, espancamento, uso reiterado de balas de borracha ou spray de pimenta e disparos de arma de fogo. Na ala feminina, mulheres nuas ou em peças íntimas teriam sido obrigadas a se sentarem sobre um formigueiro.

Besteira?

Os agentes acusados integram a força-tarefa enviada pelo governo federal no fim de julho para controlar rebeliões nas penitenciárias. Respondem ao Ministério da Justiça, sob comando de Sergio Moro. Confrontado com a denúncia, o ex-juiz não se saiu melhor que o presidente.

William Waack - A grande ofensiva

- O Estado de S.Paulo

O governo Bolsonaro diz querer atacar seu mais perigoso adversário

Pelo menos na economia o governo de Jair Bolsonaro parece ter achado um centro de gravidade, a julgar por parte do recente noticiário. Os generais que acompanham o capitão conhecem bem o conceito, que estudaram nas escolas de Estado-Maior: é a escolha de um eixo central de ação (vem do alemão “Schwerpunkt”). Trata-se da proposta, divulgada com bem menos alarde do que brigas sobre costumes, de uma ambiciosa reforma administrativa.

Ela mira num dos mais poderosos aparatos burocráticos do mundo, o universo de servidores públicos do Brasil que, de acordo com o Ministério da Economia, saltou de cerca de 500 mil em 2003 para cerca de 712 mil em 2018. Na média, é uma força de trabalho que desfrutou de aumentos de salários (já bem melhores dos que são pagos para funções similares na iniciativa privada) muito superiores à inflação. Segundo o Banco Mundial, acionado pelo próprio Ministério da Economia, o número de funcionários públicos no Brasil não é extraordinariamente elevado na comparação internacional, mas o gasto do País com o funcionalismo como proporção do PIB é muito maior do que o registrado em países ricos.

Programas de concessões e privatizações, desburocratização e desregulamentação empalidecem diante da ambição dessa ação – a reforma administrativa – que pretende reduzir salários, reenquadrar funções, baixar números de servidores e atacar privilégios. Ela seria coordenada com duas outras: a tributária (acoplada a um novo pacto federativo para distribuição de recursos entre Estados e municípios) e a demolição da rigidez dos orçamentos. A reforma da Previdência, ainda em curso, não era uma proposta ambiciosa: era uma medida fundamental sem a qual nem se poderia examinar qualquer outra coisa.

Vera Magalhães - Bolsonaro rouba papel da oposição

- O Estado de S. Paulo

Que governo precisa de oposição se pode ter Jair Bolsonaro? O presidente, neste momento, não se dedica a defender a trinca de reformas essenciais ao seu governo, a negociar o pacto federativo, a comandar a resposta do governo às questões ambientais ou a defender a aprovação do pacote anticrime. Ele está empenhado, mesmo, em brigar com o próprio partido e em mudar de legenda a um ano das eleições municipais e três da reeleição.

Sua ida e de seus apoiadores ao PSL resultou numa bancada de 52 deputados e um fundo partidário de mais de R$ 100 milhões. De que importa? Um presidente que desdenha da articulação política trata de dinamitá-la já em casa — e, aliás, adora mudar de casa, brigar com os vizinhos, com o proprietário, com os co-habitantes.

Diante desse quadro caótico, as reformas aguardam, os investidores observam perplexos, a oposição é desnecessária e ele ainda vai dar um jeito de dizer que a imprensa não destaca os fatos positivos de seu governo. É porque eles são todos ofuscados pela agenda particular, destrutiva e conflituosa do presidente da República.

José Serra* - Preferência pela educação

- O Estado de S.Paulo

A Petrobrás é forte, competente e lucrativa, não precisa de privilégios

O ataque de 14 de setembro ao maior complexo de exploração petrolífera do mundo, na Arábia Saudita, trouxe prejuízos transitórios e uma lição duradoura: o mundo está encharcado de petróleo.

Num primeiro momento, especulou-se que o inusitado ataque imporia prêmio de risco geopolítico permanente aos preços do óleo. Quase um mês depois, porém, o pico de alta nas cotações se desvaneceu numa pronunciada queda dos preços dessa matéria-prima. Na véspera do evento, a cotação do brent foi de US$ 60,22 o barril; no dia útil seguinte, fechou a US$ 69,02, uma alta de 15%. Entretanto, três semanas depois, em 2 de outubro, a cotação caiu a US$ 57,69 – 5% menor que à véspera do ataque.

A lição: o petróleo é uma riqueza cujos dias – ou décadas – estão contados. Enquanto a produção é impulsionada por novas tecnologias, como o fraturamento hidráulico e a exploração em águas ultraprofundas, a demanda não tem acompanhado o crescimento da economia mundial. O gasto energético tem sido mais eficiente e o petróleo vem sendo substituído por outras fontes de energia. De 2008 a 2018, o PIB mundial cresceu 28,3% e a demanda por óleo, apenas 16,1%.

Quanto mais demorarmos, menos bônus extrairemos da riqueza-petróleo. Quando o assunto é o pré-sal, tempo é dinheiro, literalmente.

O Brasil desperdiçou oportunidades trazidas pelos preços maiores do petróleo quando iniciou uma improdutiva e demorada mudança do marco legal do pré-sal. Ficamos cinco anos parados, sem novos leilões de petróleo. E o novo regime aprovado, o de partilha, representou só a volta mal disfarçada do monopólio da Petrobrás. A estatal passou a ser operadora compulsória de, no mínimo, 30% dos campos. E com a obrigação de arcar nessa proporção com os custos de exploração, encargo muito além da capacidade da empresa, então à beira da insolvência por causa de anos de má gestão. O primeiro leilão só foi realizado em 2013, para o campo de Libra.

Eugênio Bucci* - Imprensa, objetividade e militância

- O Estado de S.Paulo

Liberdade de informar e de opinar convive com restrições que se imaginavam extintas

A objetividade na imprensa é possível? A pergunta é velha, mas de uns dois ou três anos para cá ganhou notas de um nervosismo inédito – ou de cinismo reles. A interrogação está na ordem do dia. É sensato esperar que uma reportagem nos dê uma cobertura fiel, veraz, precisa, justa, desapaixonada sobre o que faz e diz o presidente da República? Pode-se esperar do texto elaborado por uma redação profissional a correspondência confiável entre as palavras e os fatos?

O tema nunca foi simples. Agora, desde que líderes falastrões e autoritários se viram alçados ao poder em países democráticos, ficou mais complicado. Como reportar objetivamente os acontecimentos da política quando o mandatário ofende a objetividade com suas palavras infundadas? Como reportar os discursos oficiais que induzem a erro? Quando o governante não é zeloso na observância dos fatos, ou mesmo quando ele mente, como registrar sua fala com isenção, mas sem ingenuidade? Como a imprensa pode adotar uma postura que seja ao mesmo tempo serena e vigilante?

Para quem não tem familiaridade com os dilemas das empresas jornalísticas, essas indagações podem soar tolas ou mesmo vazias, mas, acredite, são indagações mortais. Se um jornal é dócil e solícito a um governante áspero e insensível, vai passar por sabujo e se desmoralizar. Mas se um jornal deixa de registrar o que se passa para enxovalhar a autoridade, sem senso de proporção, vai se desviar para o proselitismo e perderá credibilidade. Qual a justa medida? Onde está o critério?

As dúvidas estão na mesa. A imprensa passa por ameaças que jogam sombras sobre o futuro. Enquanto perde mercado e anunciantes para as plataformas sociais, enquanto perde sustentabilidade econômica, é alvo de bombardeios reiterados e pesados de governantes que não têm apreço pela verdade factual. Isso em vários países. Economicamente fragilizada, a imprensa se vê politicamente sitiada. E aí? Como manter a objetividade diante de poderes que são ostensivamente contrários ao trabalho dos jornalistas?

O que a mídia pensa – Editoriais

- Leia os editorias de hoje dos principais jornais brasileiros:

Censura do governo Bolsonaro afronta a Carta – Editorial | O Globo

Planalto amplia ações para sufocar a produção artística rejeitada por motivos ideológicos

A censura foi formalmente extinta ainda na ditadura militar, no seu final. Mas como é espessa a cultura autoritária no país, restam traços fortes do costume do controle da expressão e da criação artísticas na sociedade.

Esta experiência já foi vivida na gestão Lula, quando se projetou uma agência (Ancinav) cuja finalidade era supervisionar o conteúdo da produção audiovisual. Outro movimento na mesma direção ocorreu por meio de um “Conselho” que fiscalizaria os jornalistas. A justa reação no Congresso e na sociedade levou Lula a engavetar os projetos.

Agora, o mesmo autoritarismo ressurge com Jair Bolsonaro, político de extrema direita, do polo ideológico oposto ao do PT, mas com o objetivo comum de censurar.

Da mesma forma, procura-se embalar a censura com argumentos enviesados. Se com o PT a intenção era “democratizar” a produção artística e os meios de comunicação, dando-se voz às “minorias”, agora justifica-se a arbitrariedade pela “defesa dos valores cristãos” e “da família”. Quando, na verdade, trata-se de impor um pensamento único. O mesmo tem ocorrido em outros países.

O desapreço de Bolsonaro e de seu grupo pela liberdade de expressão é conhecido pelas agressões cotidianas a veículos da imprensa profissional, atacados inclusive com o uso de instrumentos de Estado.

Centenário de João Cabral será celebrado com livro de entrevistas e coletâneas

Morto em 1999, autor de 'Morte e Vida Severina' também será lembrado com fotobiografia

Guilherme Henrique | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - A confissão foi registrada em entrevista à escritora e dramaturga Edla Van Steen. “Tudo o que diz respeito a mim detesto reviver. Eu prefiro não me lembrar de nada do meu passado”, afirmou João Cabral de Melo Neto.

“Ele detestava rapapés e homenagens. A vida passada dele, ele revivia em sua poesia. Acho que ele ficaria constrangidíssimo com homenagem se fosse vivo”, disse sua filha, a também escritora Inez Cabral.

Afeito ou não a celebrações, é certo que os versos cabralinos serão lembrados de maneira efusiva em 2020, ano que marca o seu centenário. Estão previstos uma fotobiografia, um livro de entrevistas e dois exemplares reunindo a obra completa na poesia e os textos em prosa. Uma coletânea bilíngue de poemas português-espanhol será lançada em novembro, na Feira Internacional do Livro de Quito.

Detentora dos direitos autorais de João Cabral, a Alfaguara ainda finaliza os trâmites para a publicação da obra completa do autor, reunida pela Nova Aguilar em 2003, quatro anos após a morte do escritor, e fora de catálogo. Segundo Marcelo Ferroni, publisher da editora, textos em prosa, incluindo discursos e ensaios, serão reunidos em outro exemplar. Os dois lançamentos devem ocorrer entre julho e agosto do próximo ano.

“Nosso desejo era ter um pedacinho da obra dele, que não está no nosso catálogo”, afirma Maria Amélia Mello, editora da Autêntica, se referindo à propriedade intelectual da Alfaguara. Ela é a responsável por “Recife/Sevilha – Conversas com João Cabral de Melo Neto”, previsto para janeiro.

A saída para driblar impedimentos legais surgiu de uma conversa com o cineasta Bebeto Abrantes, diretor do documentário “Recife/Sevilha – João Cabral de Melo Neto”, de 2003. “Ele me falou que uma parte da entrevista feita com o João não havia sido usada e que o material estava inédito”, diz Mello. Ao longo do filme, depoimentos de amigos, familiares e do próprio autor explicam a relação dele com Sevilha, onde foi diplomata entre 1956 e 1964.

Poesia | João Cabral de Melo Neto - Graciliano Ramos

Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:
de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:
que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se na fraude.
Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:
e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.
Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:
que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.