domingo, 1 de dezembro de 2019

Opinião do dia – Fernando Henrique Cardoso*

Volto de Oxford, onde celebraram os 50 anos de meu livro com Faletto sobre AL. No Brasil vejo ataques do gov à liberdade da mídia e a ONGs, contra a letra da Constituição. Calar é dar espaço à volta do autoritarismo. Dele só têm saudades quem não o conheceu ou dele aproveitaram.


*Fernando Henrique Cardoso, Tweet, 30/11/2019

Fernando Henrique Cardoso* - Resposta democrática às explosões sociais

- O Estado de S.Paulo | O Globo

Depredações precisam ter fim para que o processo constituinte no Chile possa avançar

Em conferência recentemente feita em Valparaíso, no Chile, Manuel Castells voltou a caracterizar as manifestações populares contemporâneas (como já o fizera em seu livro Rupturas) como “explosões”, mais do que como movimentos sociais. Parece que a irritação contra “los que mandam” se generaliza.

Castells, que há muito estuda as “sociedades em rede”, mostra que estas são fruto da comunicação interpessoal via internet. Os novos meios de comunicação tornam-se não só propiciadores da expansão de movimentos sociais, como também facilitadores de súbitas expressões coletivas de repúdio. Estas chegam a dar a sensação de serem capazes de abalar as estruturas de poder, o que às vezes de fato se verifica.

Desde que mostrou os efeitos do uso de telefones celulares para explicar como se deu a reação na Espanha contra as explicações inaceitáveis do governo sobre o caso famoso do atentado na estação de metrô madrilenha de Atocha, nosso autor escreveu vários trabalhos que confirmavam suas análises sobre as sociedades da “informação”.

Pois bem, novamente o caso do Chile chama a atenção: país exemplo de crescimento econômico e estabilidade institucional, de repente surge no noticiário mundial como mais um caso de revolta popular e reação policial violenta.

Convém repetir o dito por Castells na conferência de Valparaíso: o Chile é mais um caso de uma série de manifestações com dinâmicas semelhantes. Ou nos esquecemos do ano de 2013 no Brasil? Ou da primavera árabe? E por que não acrescentar o Occupy americano ou os coletes amarelos franceses? E em nossa América Latina, a vizinha Bolívia agora mesmo, ou pouco antes o Equador? E acaso o que tem ocorrido no Iraque nas últimas semanas será diferente?

Bolívar Lamounier* - Quanto falta para a morte da democracia?

- O Estado de S.Paulo

A China usa seu poder de mercado para projetar sua concepção totalitária de poder

A discussão sobre a crise da democracia representativa prossegue intensa pelo mundo todo, mas, salvo melhor juízo, acrescentando mais calor do que luz ao que sabemos desde muitas décadas atrás. Certas falácias e uma enorme lacuna podem ser facilmente identificadas.

A primeira é a suposição de que esse complexo mecanismo institucional a que chamamos democracia se pode romper em consequência de causas indiferenciadas, genéricas, sem ações políticas específicas que conduzam a tal resultado. No momento, o fato mais invocado como causa de uma possível quebra (breakdown) da democracia representativa é o descrédito generalizado das instituições que sustentam tal regime. Trata-se, efetivamente, de um fato. Por toda parte, uma grande parcela, talvez a maioria dos cidadãos, nutre clara hostilidade em relação aos políticos e partidos.

Mas, por si só, esse sentimento negativo não tem como provocar uma quebra constitucional. Não tem como provocá-la nem mesmo associado, como em geral acontece, a uma crise econômica, seja esta real (recessão, desemprego) ou imaginária (frustração de expectativas demasiado altas). Para que a quebra aconteça é preciso um Mussolini que prometa salvar rapidamente o país da “decadência”, movimentos ideológicos ou populistas atacando fisicamente as instituições e provocando reações policiais ou militares, formando uma espiral que acaba fugindo a qualquer controle; ou, no limite, um golpe, putsch ou revolução armada, como foi na Rússia durante a 1.ª Guerra, na Espanha durante os anos 30 do século passado ou na Venezuela, com a ascensão do chavismo nos anos 90. Mesmo em tais casos, a ruptura dificilmente se concretizará se lideranças políticas importantes se mantiverem firmes na defesa das instituições.

Vera Magalhães - Hora dos freios

- O Estado de S.Paulo

Não é possível condescender com a sanha autoritária do presidente Jair Bolsonaro

O episódio da fala do ministro Paulo Guedes de que não seria surpresa caso alguém voltasse a falar de AI-5 é emblemático porque mostra uma distinção cada vez mais difícil de ser feita: a daqueles que apoiam as medidas econômicas do titular da Economia e, por isso, fecham os olhos para os sistemáticos e cada vez mais graves abusos do seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro. Guedes mesmo flertou com isso em sua declaração, embora não ache que o fez.

O mercado, os conservadores, setores da imprensa, partidos como o Novo, outros ministros de Estado, eleitores que não se enquadram na categoria “mínions”, deputados e senadores estão no mesmo barco. Até quando será possível entoar o discurso de que a agenda reformista é boa e necessária e condescender com o inadmissível?

É incompatível com o estado democrático de direito aceitar excludente de ilicitude para operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para a atuação de militares na contenção de protestos de rua – que, por sinal, ainda existem apenas na mente paranoica do presidente e de seus acólitos.

É incompatível com o estado democrático de direito um presidente decidir quais veículos de comunicação podem ser lidos, assinados e entrar em licitações em órgãos públicos. É inconstitucional, é grave, é imoral, é inadmissível. Nenhum democrata pode aceitar isso, sob nenhuma justificativa. É um limite rígido, que quem aceitar ultrapassar pode não perceber agora, mas passou para o lado dos que aceitam transigir com a democracia.

Eliane Cantanhêde - Guedes e Toffoli, os caras

- O Estado de S.Paulo

Em 2020, Guedes precisa engrenar a segunda e é hora de Toffoli dar marcha à ré

Os dois grandes personagens da semana passada, não sob aplausos, foram o ministro Paulo Guedes e o presidente do Supremo, Dias Toffoli. Um falou bobagens e ajudou a tumultuar o mercado e a aumentar as incertezas. O outro não só falou como fez bobagens, atraindo uma derrota fragorosa.

De pavio curto, Guedes não tinha nada que desdenhar da disparada do dólar e muito menos tratar com ligeireza do maldito AI-5, que mexe com velhas dores nacionais e o recente mal-estar institucional causado pelo filho do presidente, deputado Eduardo Bolsonaro.

Se o País ainda se assusta, mas vai se acostumando com manifestações estapafúrdias do presidente Jair Bolsonaro e seus filhos, isso não ocorre em relação ao superministro da Economia. Guedes é um avalista do governo. Assim como persiste o “votei no Bolsonaro para evitar o PT”, mantém-se o “Bolsonaro pode falar o que quiser, o importante é o Guedes recuperar a economia”. Logo, frases enviesadas do ministro sobre câmbio e política causam desconforto desnecessário.

A marca de 2019 foi a reforma da Previdência, num ambiente fantasticamente calmo, mas Guedes encerra o ano sem engrenar a segunda e avançar nas reformas trabalhista, administrativa e tributária. Num governo em que o ministro da Economia precisa fazer as vezes de articulador político, Guedes foi atropelado pela pauta da prisão em segunda instância no Congresso, a falta de mínimo consenso na questão tributária e a decisão de Bolsonaro de não mexer num vespeiro, o funcionalismo público, já no seu primeiro ano.

Luiz Carlos Azedo - Era uma vez em… Alter do Chão

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“No caso de DiCaprio, Bolsonaro comprou mais uma briga gratuita, que queima o filme do Brasil na opinião pública mundial. É difícil explicar o que se ganha com isso”

Nono filme de Quentin Tarantino, Era uma vez em…Hollywood estreia nesta semana na tevê a cabo brasileira. É o filme com melhor bilheteria do diretor norte-americano no Brasil, com uma dupla de astros de primeiro time contracenando nos papéis principais: Leonardo DiCaprio e Brad Pitt. Todos os filmes de Tarantino (Cães de aluguel, Pulp fiction, Kill Bill, Bastardos inglórios, Jack Brown, Os oito odiados, Django livre), com antológicas e sutis recriações nos remetem a outros grandes cineastas que o diretor admira, como Martin Scorcese, Francis Ford Copolla, William Friedkin, Peter Bogdanovich, Steven Spielberg, George Lucas e Roman Polanski.

O filme retrata o ambiente da virada dos anos 1960 para 1970, quando o cinema passou por uma mudança radical, com as megaproduções dos grandes estúdios sendo ultrapassadas por filmes mais autorais e baratos, como Sem destino, lançado em 1969, um road movie americano de 1969, escrito por Peter Fonda, Dennis Hopper e Terry Southern. Produzido pelo primeiro e dirigido pelo segundo, ambos estrelando a película, revelou Jack Nicholson, que roubou a cena. Era o auge do movimento hippie e do “paz e amor”, cuja aura foi abalada pelo famoso caso da Família Manson, uma seita de fanáticos transgressores liderada por Charles Manson, que ordenou a seus seguidores uma série de assassinatos, entre os quais, o da atriz Sharon Tate.

A história de Rick Dalton pode lrender outro Oscar para Leonardo DiCaprio, por sua magnífica atuação. O personagem é protagonista de uma série de faroeste de sucesso na tevê, mas fracassa no cinema. Sobrevive encenando pontas em outras séries na telinha, enquanto busca a grande chance. Tem ao seu lado o amigo e alter ego Cliff Booth, interpretado por Brad Pitt, seu dublê em cenas de perigo e braço direito no dia a dia. Simultaneamente, nasce uma nova estrela em Hollywood: Sharon Tate, no filme O bebê de Rosemary, encenada por Margot Robie. Casada com Roman Polanski, o diretor do filme, a atriz se torna vizinha de Dalton. É um filme sobre os bastidores do cinema e seus protagonistas num momento de revolução dos costumes, com contradições tipicamente norte-americanas.

Mary Zaidan* - Um mito de falsos milagres

- Blog do Noblat / Veja

Política não existe sem economia e vice-versa

Política não anda sem economia e vice-versa. Juntas levam ao Olimpo ou despacham governos para o inferno, quintos que o Brasil habita há anos.

Apesar das promessas de bonança, os sucessores dos trágicos anos Dilma Rousseff mal conseguiram puxar o país de volta ao purgatório. Dados oficiais apontam crescimento entre 0,85% e 0,90% para 2019, menos da metade do prometido pelo governo Jair Bolsonaro, que deve terminar o ano atrás de seu antecessor Michel Temer.

Temer herdou o país no auge da depressão provocada pelo petismo, com índices negativos sucessivos de 3,8% e 3,6%. Saiu do vermelho, colheu crescimento de 1% em 2017 e entregou a batuta ao novo chefe do governo com PIB positivo de 1,1%. Nem isso Bolsonaro conseguirá.

Como falta competência ao governo para colocar em prática uma agenda séria contra a persistência do marasmo, muito menos divindade capaz de mudar os números bem abaixo da expectativa criada, o presidente recorre aos falsos milagres. Os conhecidíssimos ou os mais exóticos.

Entre métodos antigos e experimentados – diga-se, sem sucesso -, estão a desoneração da folha de pagamentos sob o pretexto de criar empregos e o tabelamento de juros. Ambos tão danosos quanto as intervenções feitas por Dilma quando ela se viu no desespero da popularidade em queda.

Janio de Freitas - Liberdade de prensa

- Folha de S. Paulo

A opção de jornais, tevês e outros, entre opor-se ou entregar-se, não vai esperar muito

Os ataques de Jair Bolsonaro à Folha mais servem aos outros jornais, revistas e tevês para pensarem sobre atos, e sobre si mesmos, do que para atingir a própria Folha em qualquer sentido. A ideia decorativa da liberdade de imprensa presta-se a fins muito relevantes, entre bons e longe disso, mas sua fragilidade a expõe tanto de fora para dentro como de dentro para fora.

Inexiste ação de qualquer poder contra um jornal, ou outra peça da mal denominada “mídia”, que não tenha reflexos sobre os demais. No mínimo, é um sinal de que estão todos sujeitos à violência, tão logo a deseje o poder agressor. Do agredido ao último dos demais, suas escolhas estão restritas a duas opções: manter-se ereto, sem ceder a condições e imposições, ou curvar-se.

As duas condutas contam com exemplos históricos. É indisfarçável, porém, que a segunda tem sido muito mais numerosa. A opção está proposta outra vez. Em situação mais complexa do que qualquer outra desde o fim da ditadura: há motivos para ver no assédio econômico à Folha um ensaio, talvez já o primeiro capítulo, de um plano para submeter o jornalismo ao projeto antidemocrático que Bolsonaro está implementando. A opção de jornais, tevês e outros, entre opor-se e represar a ameaça ou entregar-se, não vai esperar muito.

Afastado do convívio com a cúpula do jornal e da empresa, não ouso falar por um ou por outra. Mas a experiência é um prenúncio, e a memória da Folha guarda farta experiência de trato com pressões. Desde as pouco sutis queixas de Fernando Henrique e José Serra por determinadas demissões —do que há alvos e testemunhas em bom número— à invasão da empresa por Polícia Federal e Receita Federal a mando de Collor.

Vinicius Torres Freire – Bolsonaro, a calúnia como método

- Folha de S. Paulo

Livro tenta explicar a raiva carnavalesca da política das redes insociáveis

O bolsonarismo recorre com frequência à calúnia pusilânime a fim de atiçar milicianos virtuais contra “inimigos do povo”. Depois de introduzir um assunto com um “parece”, um “há suspeita”, Jair Bolsonaro costuma avançar para uma acusação, que por sua vez seria prova de alguma conspiração contra ele e o Brasil. Logo esquece que levantava apenas uma hipótese.

Bolsonaro pode ter escorregado para a calúnia estrita em seu programa semanal ao vivo, na quinta passada. Afora difamações, acusou ativistas ambientais e sociais do Pará de incendiarem a floresta. Sem evidência de crime dos militantes, Bolsonaro terá cometido crime de calúnia.

“Estava circulando uma foto dos quatro ongueiros, vi agora pouco aqui, parece que é verdadeiro, não tenho certeza, né, os caras vivendo em uma luxúria de fazer inveja para qualquer trilionário que anda pelo mundo. Ganhando a vida como? Tacando fogo na Amazônia!”, disse Bolsonaro.

Bolsonaristas repetiram a acusação temerária com desassombro sociopata. Não se trata de engano ou explosão de raiva ocasionais. É a vida como ela é um mundo em que a tentativa de argumentar com fatos é atropelada pela raiva.

Os “engenheiros do caos” exploram uma raiva de base a fim de provocar ondas de fúria, a distração permanente da lacração colérica e derrisória de “hashtags” e posts agressivos, a substância da nova política.

Bruno Boghossian – Sou você amanhã

- Folha de S. Paulo

Governo não disfarça arbítrios para silenciar críticos e premiar quem é subserviente

Aconteceu na Hungria, na Turquia, na Rússia e em outros países. Aos poucos, as instituições públicas passaram a ser usadas pelos governantes para punir desafetos e atender a interesses particulares. A perseguição se tornou método, a ponto de não ser mais possível chamar essas nações de democracias.

No Brasil, o presidente se apossa do Estado de maneira cada vez mais descarada. A decisão do governo de promover um ataque direcionado à Folha, excluindo o veículo de uma licitação para assinatura de jornais, é um exemplo flagrante desse abuso de poder para fins individuais.

As críticas à imprensa sempre foram armas retóricas de Jair Bolsonaro. A medida tomada na última semana, no entanto, não representa apenas uma escalada nessa área. O governo já explora abertamente sua autoridade e o orçamento público como ferramentas para tentar intimidar e estrangular quem não estiver alinhado a suas vontades.

Ruy Castro* - Hemorragia cultural

- Folha de S. Paulo

O ataque ostensivo à inteligência pode estar ocultando outras graves ocupações

Quando Jair Bolsonaro reduziu o Ministério da Cultura a uma subpasta e a subordinou ao Ministério do Turismo --este, hoje só um salvo-conduto para proteger um político sob suspeita--, pensou-se que fazia isso por sua ignorância do que seja cultura. É claro que tal hipótese não pode ser afastada. Tudo indica que, para Bolsonaro, que nunca abriu um livro em sua miserável vida, a cultura realmente se resuma a shows de sertanejos ou novelas da TV Record.

Mas talvez haja algo mais por trás de tanta boçalidade. Talvez ele o faça de propósito. Bolsonaro e seus asseclas não passam um dia sem achincalhar os produtores de cultura, degradar suas instituições e humilhar a enorme massa da população para quem a arte e o pensamento são essenciais para sua realização humana. É uma agressão permanente a uma categoria desarmada, uma demonstração contínua de que são capazes de se impor sobre a inteligência e que estão dispostos a reescrever a história --tanto a passada, com seus revisionismos equinos, como a que se irá escrever.

Merval Pereira - A direita se apresenta

- O Globo

Para cientista político, o fim da ‘direita envergonhada’ faz com que as táticas de Lula não tenham mais eficácia hoje

No momento em que Lula e Bolsonaro voltam a polarizar a política nacional, com a mesma tática de radicalizar para marcar territórios e, a partir deles, avançar sobre o centro como única alternativa viável para impedir o outro de ocupar a presidência da República, o cientista político Octávio Amorim Neto, da Fundação Getulio Vargas no Rio aposta, em artigo no boletim do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), que as táticas políticas de Lula não têm mais eficácia nos dias de hoje, deixando poucas probabilidades de êxito.

O motivo mais imediato é o que ele chama de “o fim da direita envergonhada”. Com a volta dos civis e da democracia a partir de 1985, analisa Octavio Amorim Neto, a direita continuou a ocupar importantes posições de poder no Executivo Federal, no Congresso Nacional, no Judiciário, nos governos e legislaturas estaduais e municipais e no seio da Forças Armadas.

Mas esse poder foi caindo ao longo do tempo, sobretudo a partir da chegada do PT à Presidência da República em 2003. “Na verdade, entre 1985 e o início da década de 2010, o Brasil teve uma “direita envergonhada”, que recusava dizer seu nome às claras. Foi nesse ambiente que as táticas de Lula vicejaram”.

De fato, a direita política nacional, que durante os anos de predomínio petista se escondeu, envergonhada, com o disfarce de centro, no máximo centro-direita, revive no Brasil desde a eleição de Jair Bolsonaro, e também na América do Sul.

Bernardo Mello Franco - Armação ilimitada

- O Globo

A polícia paraense prendeu brigadistas acusados de tacar fogo na floresta. A notícia parecia estapafúrdia, e era. Mas foi festejada por se ajustar às ficções de Bolsonaro

Na “nova era”, não basta tomar cuidado com os excessos do guarda da esquina. É preciso se precaver contra as arbitrariedades do delegado, do promotor e do juiz.

Na quarta-feira, a polícia paraense prendeu quatro voluntários que ajudavam a combater incêndios em Alter do Chão. Eles foram acusados de tacar fogo na floresta para receber dólares de ONGs internacionais.

A notícia parecia estapafúrdia — e era. Mesmo assim, foi festejada por Jair Bolsonaro, que se apressou a comemorar o feito das redes sociais.

O caso agradou porque se ajustava a uma das ficções favoritas do presidente. Há meses, ele tenta convencer a plateia de que ambientalistas estariam por trás das queimadas na Amazônia. É uma invencionice conveniente, que desvia o foco da aliança do governo com ruralistas e madeireiros.

Em julho, Bolsonaro recorreu ao embuste quando o Inpe alertou para a escalada do desmatamento. Em vez de reconhecer o problema, ele contestou os números oficiais e disse que o diretor do instituto, um cientista respeitado, estaria “a serviço de alguma ONG”.

Elio Gaspari - Uma patrulha selvagem contra a Bishop

- O Globo | Folha de S. Paulo

As críticas à escolha de Elizabeth Bishop evitaram a discussão de sua poesia

O sujeito soube que a poeta americana Elizabeth Bishop seria homenageada pela Flip do ano que vem e temeu pelo início de mais um debate indigente. Festejar uma lésbica e alcoólatra seria um prato feito para o ministro Abraham Weintraub. Eis que o pedagogo bolsonarista ficou calado e a escolha de Elizabeth Bishop foi condenada com outras críticas selvagens. Como um bolsonarismo de sinal trocado, essa intransigência malversa a história, tentando mudar o resultado de um jogo no replay.

As críticas à escolha de Bishop evitaram a discussão de sua poesia e centraram-se em três pontos. Ela viveu no Brasil por mais de dez anos, mas olhava para a terra de forma condescendente, menosprezando seus literatos (falou mal de Manuel Bandeira). No pior dos pecados, em 1964 apoiou a deposição do presidente João Goulart.

Bishop não olhou para o Brasil como o francês Claude Lévi-Strauss, que passou por aqui nos anos 1930. Ela era poeta e ele, antropólogo. As opiniões de Bishop foram expostas em cartas, enquanto Lévi-Strauss ponderou suas ideias no livro "Tristes Trópicos". Ela disse que toda a poesia latino-americana cabia num poema de Dylan Thomas. Exagerou, mas Lévi-Strauss traçou um retrato fiel e devastador da elite cultural brasileira. Livrou Euclides da Cunha e Heitor Villa-Lobos.

O caroço das críticas a Elizabeth Bishop esteve no seu apoio à deposição de Goulart: "Foi uma revolução rápida e bonita, debaixo de chuva —tudo terminado em menos de 48 horas." Bonita não foi, mas naqueles dois dias morreram sete brasileiros. (Neste ano a polícia do Rio matou 1.546 pessoas.)

Míriam Leitão - Entre a inépcia e a ilegalidade

- O Globo

Escolhas e decisões do presidente Bolsonaro não são apenas ofensivas, revogam a razão pela qual os órgãos, setores e ministérios foram criados

Ocaso da escolha para a Fundação Palmares supera em muito a questão ideológica e é bem mais do que afronta ao movimento negro. Quem acha que a escravidão foi boa para os descendentes atuará contra os objetivos estabelecidos na lei que criou a Fundação Palmares. O governo Bolsonaro está seguindo neste caso o mesmo padrão de outras escolhas. O ministro do Meio Ambiente é antiambiental, o da Educação é mal-educado e ataca educadores, o de Relações Exteriores fere regras básicas da diplomacia, o secretário de Cultura é antagônico à Cultura, a ministra da Mulher defende a submissão aos maridos.

Há limites para o desencontro entre os nomeados pelo governo e a vocação dos cargos que ocupam. Esses limites estão sendo ultrapassados em atos diários. No caso da Fundação Palmares o absurdo foi tão longe que se transformou em ilegalidade. E cabe ao país se perguntar, talvez na Justiça, se pode um ocupante de cargo público ter sido escolhido exatamente porque tem convicções opostas aos dos princípios estabelecidos na lei de criação do órgão.

Dorrit Harazim - Cura ideológica

- O Globo

O vazamento chega em péssima hora para o regime da China, suficientemente ocupado com a teimosa insurgência em Hong Kong

Vazamentos de documentos secretos na China de XiJinping são raros. Daí o valor do brado do material publicado dias atrás pelo “New York Times”, e complementado por lote igualmente devastador obtido pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (Icij,na sigla em inglês). Ambos tiveram acesso a centenas de discursos e diretivas internos sobre a “reeducação” imposta às minorias étnicas muçulmanas, em particular os dez milhões de uigures da rica província de Xinjiang. O território situado no norte do país faz fronteira com o Paquistão e o Afeganistão, duas nações de maioria muçulmana, e é visto pelo regime de Pequim como incubadeira de terroristas islâmicos. Por isso, recebe o tratamento reservado a desviantes ideológicos.

Há anos denúncias de opressão contra os uigures emergem aqui e ali, sempre negadas por Pequim. Agora, com o vasto material vazado ao que parece por um membro do próprio Partido Comunista, a questão muda de figura. O vazamento chega em péssima hora para o regime da China, suficientemente ocupado com a teimosa insurgência nas ruas de Hong Kong. Os documentos mostram que o recurso a uma “cura ideológica” foi iniciado pelo camarada Xi em 2014, pouco após um atentado uigure a mais de 150 pessoas numa estação ferroviária da província, com 39 mortos. Na época, em discurso reservado, o presidente exigiu o uso de “ferramentas da ditadura do povo democrático, sem misericórdia”.

Sugeriu que o partido adotasse algumas práticas da “Guerra ao terror” decretada por George W. Bush em 2001, além de outros métodos clássicos como a delação popular e confissões estalinistas. Também passou a fazer parte do cardápio de repressão o emprego maciço de reconhecimento facial, testes genéticos, big data e uma plataforma de inteligência artificial destinada a prever crimes.

O que a mídia pensa – Editoriais

Amadorismo- Editorial | O Estado de S. Paulo

Em sessão conjunta na quarta-feira passada, o Congresso derrubou nada menos que 7 de 11 vetos apostos pelo presidente Jair Bolsonaro a projetos de lei. E é possível que, na semana que vem, outras dezenas de vetos tenham o mesmo destino. Segue, assim, a toada de um governo que se recusa a organizar uma base parlamentar capaz de sustentar as iniciativas de interesse do Palácio do Planalto.

Ao final do primeiro ano do mandato, está cada vez mais claro que o Executivo, sob Bolsonaro, está se tornando progressivamente irrelevante na definição da agenda política nacional, o que é um fenômeno exótico em se tratando de um regime presidencialista – e potencial gerador de incertezas para investidores e cidadãos em geral.

Poesia – Carlos Drummond de Andrade - Entre o ser e as coisas

Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.

As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.

N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungindo,
uma fogueira a arder no dia findo.