quinta-feira, 12 de março de 2020

Eugênio Bucci* - Por que os líderes de oposição não se unem contra o fascismo?

- O Estado de S.Paulo

Se Lula, FHC e Ciro souberem juntar forças, a maioria dos brasileiros vai segui-los

A cada dia mais, o presidente deixa de lado os disfarces e escancara suas pretensões autoritárias. No sábado passou a convocar oficialmente o ato público do próximo dia 15. Com isso expõe seus seguidores ao risco de contágio pelo coronavírus, mas, segundo ele, esse vírus aí “não é tudo isso que a grande mídia propaga”.

Saúde pública à parte, o dia 15 de março promete ser uma apoteose da truculência política. Nas redes sociais a convocação destila ódio, clama por “intervenção militar já”, calunia ministros do Supremo Tribunal e faz apologia da violência e da censura. É tudo o que o chefe de governo mais adora. Viciado em praticar bullying estatal contra as redações independentes, ele pressiona empresários que anunciam em jornais, discrimina os órgãos de imprensa que lhe desagradam e faz o que pode (e, principalmente, o que não pode) para quebrar empresas jornalísticas e humilhar jornalistas. Para ele, quanto mais desaforado for o dia 15, melhor.

O clima piora a cada lance. Na semana passada, o governo vetou a Folha de S.Paulo na cobertura do jantar de Bolsonaro com Trump em Miami. Em outra frente, ordenou a retirada dos diplomatas brasileiros de país vizinho - a ameaça de guerra é o gozo do nacional-populismo. O orçamento das Forças Armadas só cresce, enquanto os elogios das autoridades aos policiais amotinados proliferam, para deleite das milícias e dos parlamentares que trabalham para elas. Para completar o serviço, o chefe de governo, sem mostrar nenhuma prova, começou a acusar o Tribunal Superior Eleitoral de ter fraudado as urnas eletrônicas no primeiro turno de 2018. O objetivo é desmoralizar as instituições do Estado Democrático de Direito. É para isso que vai servir o dia 15.

Dizem os bolsonaristas que todo ato público é democrático. Mentira. Bem sabemos que a democracia garante aos comuns do povo o direito de gritar o que quiserem, incluídos insultos contra o presidente da Câmara dos Deputados, mas o chefe do Poder Executivo, obrigado pela Constituição a promover a harmonia entre os Poderes, não tem o direito de açular suas falanges a xingar a Câmara, o Senado e o Supremo. Toda democracia tem gente na rua, é verdade, mas gente na rua não é sinônimo de democracia. No nazismo alemão, um regime totalitário, e no fascismo italiano, uma tirania, havia rios de gente na rua. Há comícios até na Coreia do Norte, que não é nada democrática. Ditadores se deliciam com os aplausos das multidões adestradas.

Portanto, os chamamentos do presidente brasileiro para um evento cuja propaganda está repleta de ofensas ao Legislativo e ao Judiciário não têm nada de democráticos. São, isso sim, indícios de fascismo.

Diante desses indícios, clamorosos, o mais chocante é a apatia das oposições. O Estado brasileiro foi tomado por uma estranhíssima “democracia militar”, com oficiais de alta patente controlando todos os ministérios e gabinetes no Palácio do Planalto, e os líderes de oposição, quando muito, postam um tuíte lamuriento em pleno carnaval ou vão posar de vítimas em Paris. O chefe de Estado desembarca um palhaço na porta do Alvorada para caçoar do pibinho, oferecendo bananas aos repórteres, e os líderes oposicionistas resmungam para suas claques sectárias. É patético.

Aprendamos com o passado. Em 1966, JK, João Goulart e Carlos Lacerda costuraram um arremedo de Frente Ampla contra um governo militar que tramava o endurecimento da repressão. Fracassaram, mas tentaram. Em 1984, políticos tão diferentes como Ulysses, Tancredo, Brizola, Montoro e Lula se uniram na campanha das Diretas Já. Perderam, mas apressaram o fim da ditadura.

E agora? Por que é que Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Ciro Gomes não convocam o País para dizer “não” ao arbítrio que se insinua no horizonte? Bem sabemos que não é simples. Os três cultivam pirraças recíprocas. Ciro, dado a valentias verbais, dispara desaforos contra a “esquerda bandida” e fecha portas. Lula, machucado pela condenação - controversa e açodada - que o trancou numa cadeia, tem motivos para andar zangado, mas bem que poderia superar a autocomiseração e, em vez de elogiar as agressões de Bolsonaro contra a imprensa, fazer um gesto para unir campo democrático. Para completar, FHC, depois de lavar as mãos no segundo turno de 2018, entregou-se ao imobilismo de nhenhenhéns, mimimis e não-me-toques. Enfim, o clima entre eles não ajuda.

Mas, a despeito de tudo isso, os três são as maiores lideranças democráticas do Brasil: nunca flertaram com o arbítrio nem atentaram contra a imprensa, contra as artes, contra a ciência e contra a universidade. Com esse denominador comum, acima das diferenças legítimas que os dividem, eles têm uma base para se acertar.

A liberdade e os direitos fundamentais estão sob ameaça no Brasil e, como escreveu a historiadora Heloisa Starling, “o que protege a liberdade é uma coisa só: nossa capacidade de mobilizar as pessoas em sua defesa”. A democracia precisa de Lula, FHC e Ciro - juntos. Se eles souberem unir forças, a maioria dos brasileiros vai segui-los. E vai frear o fascismo.

*Jornalista, é professor da ECA-USP

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