quinta-feira, 12 de março de 2020

José Serra* - O que é essencial ficou de fora

- O Estado de S.Paulo

Reforma tributária aumenta impostos sobre o consumo das famílias. Um disparate!

O texto-base da proposta de reforma do sistema tributário, em debate na Comissão Mista do Congresso, deixou de fora o que de fato querem as empresas e os consumidores: a simplificação imediata, acompanhada da progressiva redução dos tributos sobre o consumo, que oneram as famílias de baixa renda. Isso é o essencial e jamais poderia ser sacrificado ou, pior, agravado sob qualquer pretexto.

No ano passado publiquei neste espaço os motivos pelos quais não poderíamos aprovar uma reforma tributária com os parâmetros das que estão no Congresso. Se, por um lado, geram pressão regional para que se amplie a elevadíssima descentralização das receitas da União, por outro, mitigam a autonomia tributária dos entes federados. Sem mais nem menos, deixam de atacar um dos principais problemas do nosso federalismo: a irresponsabilidade fiscal dos governos subnacionais.

A proposta atual tem como base o texto da Câmara e prevê dois pontos que estão na contramão do que deve ser feito. Reduz os impostos dos bancos e causa um choque de preços e de renda nos demais setores, aumentando os impostos sobre o consumo das famílias, com maior impacto nas de menor renda: um total disparate!

Estima-se um aumento expressivo da carga tributária do setor de serviços: educação, 211%; transporte, 59%; profissionais autônomos, 460%; taxistas, 1.150%; dentre outros. Cabe destacar que esse é o setor que mais emprega no Brasil e onde estão concentrados os empregos de baixas qualificação e renda. Com esse aumento no custo dos serviços para a classe média haveria redução da demanda e desemprego nas classes mais baixas. Em resumo, haveria perda de renda para a classe média e desemprego nas regiões mais carentes. Como consequência, essas regiões necessariamente recorreriam a novas transferências compensatórias ou sobrecarregariam a assistência social e o seguro-desemprego.

Seria um erro obsceno permitir esses eventos econômico-sociais no momento em que o País experimenta elevado desemprego combinado com aumento da desigualdade de renda.

Há ainda o risco de aumento expressivo da sonegação fiscal com o novo modelo no destino. Acontece que as economias de diversas localidades consumidoras ainda são rudimentares, pautadas em serviços locais focados em atender pessoas físicas com base na circulação da renda oriunda das transferências. Não por menos, sua arrecadação também é precária, com baixa capacidade de fiscalização. Ou seja, parte da renda repartida pelos produtores com os consumidores poderia ser desperdiçada com o aumento da sonegação fiscal nessas localidades, inclusive de receitas que seriam destinadas à União, que também teria de promover aumento de alíquotas para compensar a perda global.

É preciso deixar bem claro: a proposta não simplifica de imediato o sistema tributário, como vendem seus defensores. O essencial ficou de fora! É fácil perceber que a transição de modelos envolve a convivência conflituosa entre o sistema atual e o novo por pelo menos dez anos. Não é preciso ser nenhum Ph.D. em sistema tributário para perceber que a complexidade de dois sistemas (o novo e o atual) é maior que a de apenas um. Ademais, a complexa e longa transição deixaria o novo modelo exposto a todo tipo de atritos e pressões políticas por mudanças. Com isso, o modelo ficaria sujeito ainda à insegurança jurídica decorrente da resolução de conflitos entre os inevitáveis perdedores e ganhadores da nova arena.

Busca-se uma transição longa porque o novo sistema causaria um enorme choque de preços entre os diversos setores produtivos e regiões do País. Nessa transição, haveria certamente um aumento da carga tributária em decorrência da elevação dos novos impostos, especialmente nos Estados e municípios perdedores. Uma análise imparcial e desapaixonada da proposta de reforma tributária em jogo nos leva a crer que também haverá de partida uma ampliação dos custos da arrecadação tributária.

Este diagnóstico impõe ações para encontrarmos outros caminhos para reformar nosso sistema tributário. Seu aperfeiçoamento depende de um esforço amplo baseado num debate técnico. Evidente que isso requer grande articulação e visão consensual entre o Executivo, o Congresso e os atores econômicos, partindo dos problemas para as soluções.

Devemos buscar medidas de aperfeiçoamento graduais que atendam às demandas da sociedade, que essencialmente são: simplificação imediata do recolhimento de tributos; redução dos litígios tributários, com diminuição da belicosidade e liberalidade do fisco; redução da sonegação para maior justiça social; e redução da cumulatividade e da carga tributária global, sobretudo dos tributos sobre o consumo que incidem desproporcionalmente sobre os mais pobres. Tais medidas devem reconhecer o atual arranjo e atender à grande maioria sem produzir perdedores.

Essa construção política ainda não se observa, não cabe no prazo de 45 dias, apresentado pelo plano de trabalho da comissão mista e só será possível se lideranças do Congresso e do Executivo promoverem o diálogo necessário para avançarmos com clareza e determinação.

*Senador (PSDB-SP)

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