segunda-feira, 30 de março de 2020

Tony Volpon* - A tipologia da crise

- Valor Econômico

Quando a fase aguda da crise passar, seremos forçados a retomar a agenda fiscal ainda incompleta

Crises financeiras e econômicas infelizmente não são novidades. Podemos dizer que há uma tipologia de crises, com distintas fases. A razão para isso é institucional e não muda: a natureza do ser humano.

Vou usar alguns dados recentes dos estrategistas e economistas do UBS para ilustrar em que fase estamos na crise atual - que é, certamente, a maior desde 2008 e que deve ultrapassá-la em severidade e consequências. Farei, ao longo do desenvolvimento do meu raciocínio, comparações com a crise de 2008, assunto que eu discuto extensivamente no meu livro.

Primeiro, alguma coisa ruim acontece, mas é desprezado pelos mercados. Em 2007, foram os primeiros sinais de estresse em alguns fundos com exposição alavancada em instrumentos derivativos ligados ao mercado de dívidas imobiliárias. Na crise atual, o início da epidemia no centro da China.

Em seguida, há algum reconhecimento do problema, mas ainda com relativo desprezo, normalmente ligado à ideia de que o problema pode ser contido facilmente. Em 2007 e 2008, muitos argumentavam que o problema do setor imobiliário se resumia a certos exageros em alguns mercados locais, sem consequências nacionais ou macroeconômicas. Na crise atual, a crença que a nova epidemia era um fenômeno que ficaria restrito à China.

Outra variante deste momento é a crença de que, apesar de sério, os governos têm como controlar o problema. Em 2008, isso passou a ser o consenso depois da intervenção do Fed no banco Bear Stearns. Na crise atual, quando o governo chinês “fechou” a província de Hubei, o que gerou a falsa impressão que a epidemia seria um fenômeno local.

Em seguida, os mercados entram em pânico. Em 2008, houve crescente pressão em vários mercados no começo do verão, quando o banco Lehman Brothers entrou em uma longa agonia, culminando em sua bancarrota em outubro - evento desnecessário que desencadeou o pânico global. Na crise atual, o pânico se inicia com dados da Itália mostrando o alastramento da epidemia no continente europeu.

Nesta fase, há um descompasso com os gestores da política econômica. Eles podem desprezar os efeitos da crise e sua severidade, como vimos recentemente por parte de vários governos e bancos centrais (eu argumentaria que infelizmente nosso BC ainda está neste campo, pelo menos no manejo da taxa Selic). Em 2008, o governo americano chegou a precipitar o pânico acreditando que o mercado estava “preparado” para ver o Lehman Brothers quebrar.

Com a inação dos governos, o pânico do mercado aumenta, com encadeamento de liquidações de posições levando a grandes perdas em estratégias ganhadoras (na nossa crise, isso esta ocorrendo com as estratégias de “risk parity”, entre outras) e uma corrida desenfreada por liquidez (que é onde os mercados estão hoje, com a venda indiscriminada tanto de ativos de risco quanto tradicionais ativos “safe haven”).

Então acontece o evento-chave: os governos entram em pânico. Uma série de medidas são anunciadas em sequência. Estamos agora nesta fase: pelos nossos cálculos, já temos mais de 2,2% do PIB global empenhado em medidas anti-crise, uma quantidade maior do que 2008. Em alguns países temos garantias de risco de crédito chegando a 15% do PIB. Todos os bancos centrais estão, não somente reduzindo juros, mas também injetando liquidez e comprando ativos de todos os tipos, sinalizando, como fez o Fed, que não há limites de expansão dos seus balanços.

Mas o mercado, em um primeiro momento, não acredita na eficácia das medidas. O consenso é que elas não são suficientes e/ou vieram tarde demais. Esta é a fase mais aguda da crise: todos estão em pânico e a descrença é generalizada. Em 2008, várias “bazucas” foram lançadas dias depois da quebra do Lehman Brothers, mas foi somente em 2009 que os mercados se acalmaram. Estamos nesta fase agora.

Outra forma de ver isso: apesar de todos os anúncios dos últimos dias, no cálculo dos nossos estrategistas, os preços de mercado hoje apontam para um crescimento global de 1%, quando a média é de 4% e qualquer coisa abaixo de 2,5% seria considerado recessivo a nível global. Estamos hoje precificando crescimento futuro cinco desvios padrões abaixo da média histórica.

Mas apesar da descrença, as medidas acabam surtindo efeito. Neste momento, o pânico dos mercados começa a moderar e, em algum momento desta fase, encontramos o que, ex-post, será reconhecido como o “fundo” do poço, com os mercados se recuperando antes da economia.

A comparação com 2008 é ilustrativa, mas toda a crise é suis generis. Na crise atual, o que tem assustado é sua velocidade: pelos nossos cálculos, os mercados estavam no final de janeiro (com a epidemia já ocorrendo na China) precificando um crescimento global acima de 4%. Em 2008 demorou mais de um ano e meio entre os primeiros sinais concretos de problemas nos mercados e o pânico de outubro de 2008.

Outra importante diferença é que a crise atual tem um componente biológico altamente incerto. Hoje há um grande debate técnico sobre a extensão temporal das medidas de “social distancing” que devem ser adotadas para debelar o surto epidêmico. Outro fator seria o impacto da temperatura sobre o alastramento da epidemia, o que pode ser um fator moderador no caso brasileiro. Obviamente o tamanho do dano econômico desta crise será em grande parte decidida pelo tempo que devemos adotar essas medidas e sua eficácia em diminuir e melhor distribuir os impactos da epidemia sobre a população e a pressão sobre o sistema de saúde.

Finalmente, enquanto 2008 foi uma crise de balanço, esta crise é uma crise de receita/fluxo. Empresas saudáveis, especialmente a de serviços, estão enfrentando uma “parada súbita” de receita. Obviamente neste caso governos devem, de forma ampla e irrestrita, fornecer apoio financeiro para as empresas e seus funcionários passarem por este período sem destruir seus negócios de forma desnecessária. Devemos nos preocupar com o custo deste apoio depois da crise.

Ainda assim devemos estar cientes que o Brasil não tem o espaço fiscal de países que tem moedas reservas e que podem usar seus bancos centrais como “compradores de último recurso”. Assim quando a fase aguda da crise passar, seremos forçados a retomar a agenda fiscal ainda incompleta.

*Tony Volpon é economista chefe do UBS Brasil e autor de “Pragmatismo sob coação”, pela Alta Books.

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