segunda-feira, 30 de março de 2020

Alex Ribeiro - BC terá instrumentos para um possível QE

- Valor Econômico

Brasil ainda tem um bom espaço para baixar os juros

Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que o governo está enviando ao Congresso Nacional aumenta o arsenal do Banco Central para enfrentar o aperto de liquidez e de crédito criado pela crise do coronavírus. Mas também amplia o leque de instrumentos de política monetária não convencional, permitindo que o BC faça expansão quantitativa (QE, na sigla em inglês), se for necessário num eventual ambiente de juros zero.

O Banco Central distribuiu uma minuta da PEC a lideranças do Congresso, segundo apuração em conjunto com o repórter Fabio Murakawa, que modifica o artigo 164 da Constituição. Esse dispositivo veda a concessão pelo BC, direta ou indiretamente, de empréstimos ao Tesouro Nacional ou a qualquer outro órgão que não seja instituição financeira.

Pela proposta, serão abertas duas exceções, que se aplicam no estado de defesa, estado de sítio, calamidade pública ou “outra situação de grave ruptura econômica reconhecida pelo Congresso Nacional”. As exceções são a compra, pelo BC, de títulos de emissão do Tesouro, no mercado nacional ou estrangeiro; e de ativos financeiros, privados ou públicos, no mercado financeiro e de capitais.

Como foi anunciado na sexta pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, a medida permite dar liquidez ao mercado de títulos privados, comprando diretamente esses papéis, sem a intermediação de instituições financeiras. Dessa forma, o BC pode sustentar o preço desses papéis e dar saída para fundos de investimento que aplicam nesses ativos. De quebra, amplia a liquidez para as empresas que nos últimos anos passaram a se financiar no mercado de capitais. O Banco Central já havia criado uma linha de empréstimo aos bancos, de US$ 91 bilhões, para eles comprarem debêntures no mercado. Mas essa injeção de liquidez é indireta e depende, em grande medida, do apetite dos bancos para assumir riscos.

O propósito da PEC, neste momento, é atuar na liquidez do mercado, mas teoricamente o seu alcance vai além disso. A própria exposição de motivos da PEC diz que as mudanças estão no “contexto das atribuições do BC relacionadas à execução da política monetária e à manutenção da estabilidade financeira”.

A autorização para a compra de títulos privados e, em especial, de títulos públicos, permite, em tese, que o Banco Central faça a chamada expansão quantitativa, segundo especialistas ouvidos pelo Valor, embora a atuação neste momento claramente não tenha esse propósito.

A compra desses papéis é a forma usada por bancos centrais de economias avançadas para achatar a curva de juros. Quando o BC compra títulos em vencimentos de longo prazo, como dois anos, cinco anos ou dez anos, o preço desses papéis sobe, e a taxa de juros cai.

É uma forma de estimular a economia quando a taxa básica está em zero, e o BC se defronta com os limites dos juros nominais negativos.

Um especialista em política monetária diz que, hoje, não há sentido em o Banco Central realizar operações de expansão quantitativa. Os juros nominais estão em 3,75% ao ano e ainda há espaço para eventuais cortes, se as circunstâncias exigirem mais estímulos para manter a inflação na meta.

O Brasil tem algumas características que minimizam o risco de ser preciso um programa de QE pelo Banco Central. Um deles é que as metas de inflação são mais altas que as de economias avançadas e, por isso, por aqui é possível explorar o terreno dos juros reais negativos. Hoje, a taxa real está perto de zero. Outra característica é que, por enquanto, nossa taxa de juros de equilíbrio é relativamente alta - as estimativas de mercado estão em cerca de 3% reais.

Mas essa é uma fotografia de momento - e as coisas podem mudar rapidamente. Se a crise do coronavírus se prolongar, por exemplo, é possível que a inflação corrente e as expectativas de inflação caiam para níveis inferiores às metas de inflação. A crise pode, por outro lado, ser menos duradoura, mas sempre há o risco de a economia ser atingida por um novo choque.

Esses novos instrumentos de atuação do Banco Central podem ser entendidos como uma salvaguarda adicional, para ser usada em circunstâncias muito especiais. Assim deve ser porque, como alerta o economista-chefe do Itaú Unibanco e ex-diretor do BC, Mário Mesquita, em entrevista ao Valor (ver página C1), podem ter repercussões inflacionárias preocupantes, caso sejam mal utilizados.

O que preocupa é a repercussão fiscal, com a diluição da separação entre Tesouro e BC. Quando o Banco Central compra títulos privados no mercado, a dívida bruta do governo sobre, dentro do arranjo atual de atuação do BC. O BC emite moeda para comprar os papéis e, para evitar que o excesso de dinheiro em circulação na economia derrube a taxa Selic abaixo do desejado, a autoridade monetária absorve novamente esses recursos por meio de operações compromissadas. Essas operações compromissadas fazem parte da dívida bruta.

A PEC inclui a permissão para o Banco Central acolher depósitos voluntários, da mesma forma como faz o Federal Reserve (Fed, o BC americano). Os depósitos voluntários podem substituir as operações compromissadas como instrumento para enxugar a liquidez. A vantagem é que, ao contrário das compromissadas, os depósitos dos bancos no BC não são contabilizados como passivo do governo na dívida bruta.

Uma questão é como os mercados vão receber essa possível mudança. Apesar de o Fed lançar mão do expediente, pode ser que economistas do setor privado passem a calcular a dívida bruta com um ajuste para incorporar os depósitos voluntários. É que, se o Banco Central passar a comprar títulos públicos para fazer a expansão quantitativa, os depósitos voluntários provocariam uma redução da dívida. Nessas circunstâncias, o BC compraria títulos do governo, o que reduz a dívida pública, mas enxugaria os recursos com depósitos voluntários, sem aumentar a dívida. Parece natural que a regulamentação da PEC determine que a compra de títulos públicos seja esterilizada com operações compromissadas.

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