segunda-feira, 6 de abril de 2020

Demétrio Magnoli - ‘Não saia de casa!’

- O Globo

A vida ou a liberdade, o que vale mais?

‘Se eu pegar corona, peguei corona”, disse o jovem Brady Sluder, em 18 de março, Spring Break, quando festejava numa praia de Miami enquanto as autoridades recomendavam evitar aglomerações. Brady não é Jair mas, como ele, proclamava intuitivamente o princípio da filosofia libertária, alinhando-se com um variado espectro de pensadores que só reconhecem o deus das liberdades individuais. Brady perdeu — e pediu desculpas à sociedade. Jair perdeu até a companhia de Donald, não se desculpou e foi exilado para uma quarentena moral.

Nós vencemos. Mas quem somos “nós”?

“Não saia de casa!”. A ordem universal reflete a vitória da tradição filosófica do contrato social, que inscreve os direitos do indivíduo na moldura das normas de segurança coletiva. A tradição não é monolítica, fragmentando-se em tonalidades que se estendem do liberalismo progressista, numa ponta, ao totalitarismo, na ponta oposta. A Peste Negra em curso testa essas diferenças, colocando-nos diante de um espelho de cristal. Quem quer ser China?

A OMS exibe a China como modelo de eficiência, calando-se sobre a camuflagem inicial, a repressão aos médicos que davam o alerta, a brutalidade estatal do isolamento de Wuhan e, agora, sobre as suspeitas estatísticas chinesas, contaminadas pelo vírus do triunfalismo. Na Hungria, Viktor Orbán quer ser China: o primeiro-ministro obteve poderes de exceção por prazo indefinido de um parlamento controlado por seu partido, manipulando a crise sanitária para converter o país na primeira ditadura da União Europeia. “Não saia de casa!” — ou te coloco na cadeia por oito anos, ameaça o ídolo húngaro de Bolsonaro.

A vida ou a liberdade, o que vale mais? Da Itália à Suécia, passando por Espanha, França e Alemanha, estende-se um gradiente de medidas emergenciais que vão da quarentena severa a moderadas reduções de contatos sociais. Há penalidades, desde multas até processos criminais. Mas os governos estabelecem normas claras e temporárias, operando pela persuasão. Não é assim no Reino Unido, onde regras obscuras convivem com inumeráveis atos de arbítrio: drones filmam casais que passeiam com o cachorro no campo, motoristas são convocados a tribunais por dirigirem numa estrada aberta, policiais advertem alguém que fazia compras “não essenciais”.

“Agora estou dando uma ordem”, bradou Wilson Witzel, o improvável “campeão da vida” que mira “bem na cabecinha” e não entrega água potável às residências. O coronavírus carrega, no seu RNA, o gene do Estado policial. Mandetta explicou que “as pessoas podem caminhar, fazer algum esporte”. Witzel promete encarcerar os que desrespeitarem um isolamento social genérico. Na Rocinha, no Alemão, em tantas ilhas onde vale a lei da força, serão as milícias a aplicar sua ordem?

O vigilantismo escorre para baixo, despertando instintos latentes numa sociedade assustada. Moradores de edifícios cujas janelas se abrem para o longo viaduto do Minhocão, em São Paulo, vaiam, xingam, agridem pedestres e ciclistas que se atrevem a “caminhar, fazer algum esporte” na via elevada deserta. “Vai pra casa!” — o grito de guerra santifica, purifica, desinfeta. Fechamos fronteiras nacionais, trancamos rodovias intermunicipais. Por que não montar barreiras de vigilantes em torno de bairros ou quarteirões?

“Juntos vamos derrotar o coronavírus” — a capa unificada dos jornais brasileiros de 23 de março, cópia da iniciativa argentina, traz implícita uma curiosa mensagem jornalística contra a pluralidade de opiniões. “Juntos”, como quem? China ou Suécia? Alemanha ou Reino Unido? E com quem: 

Mandetta ou Witzel? Orbán decretou penas de prisão para quem divulgar notícias sobre a pandemia classificadas como falsas pelo seu governo. A imprensa está pronta a aceitar qualquer medida formulada sob o alegado propósito de derrotar o “inimigo comum”?

Jair, a exemplo de Brady, nunca leu os libertários. Depois de confraternizar na praia, pode mudar radicalmente de ideia, imitando Viktor para se declarar um “presidente em guerra”. Vamos, juntos, proteger as liberdades enquanto protegemos a vida?

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