segunda-feira, 6 de abril de 2020

Fernando Gabeira - O risco de não entender

- O Globo

Imagino uma crise econômica braba e me lembro da experiência de viver com pouco

O trabalho corre silencioso na quarentena. No princípio da noite, ouço o bater de panelas, e uma vizinha roda uma gravação do Hino Nacional. É hora de um pequeno descanso, esquecer a contagem de mortos nos EUA, Inglaterra, Espanha, Itália, o horror dos corpos insepultos nas ruas de Guaiaquil.

No meio da tarde, costumo ouvir a voz do prefeito numa gravação voltada aos moradores do Pavão-Pavaozinho: “Olá pessoal, aqui é o prefeito Marcelo Crivella.” Ele pede que fiquem em casa e que Deus proteja a todos. Que cena, o Crivella pedindo que fique em casa; logo eu, que tinha tanto o que fazer nessa pandemia.

Mas sou do grupo de risco. Há um grande debate sobre o que fazer com os velhos. Uma escritora amiga me disse pelo telefone: antes os velhos tinham valor porque concentravam a experiência; agora, com o Google, podem se livrar da gente com facilidade.

Mas, para cada um nós, há uma experiência que não se acha no Google. No meu caso, por exemplo, a quarentena é suave. Em primeiro lugar, porque os mais pobres estão em espaços menores e mais escuros; os brasileiros no exterior, encurralados em pequenos quartos de hotel, hostilizados pelos nativos.

O isolamento não me é estranho. Alguns meses de cadeia me ensinaram muito. Por isso, sempre estou buscando uma pequena fresta para o banho de sol. Durante a clandestinidade, ficávamos em casa de simpatizantes. Os mais procurados pela polícia iam para a “geladeira”. Não só éramos proibidos de sair. Quando o dono da casa estava fora, não podíamos fazer barulho, espirrar, tomar banho. Isso poderia chamar a atenção dos vizinhos. Era um ensaio de petrificação silenciosa.

Diante do que está por vir, acredito mais na experiência pessoal do que no Google. Imagino uma crise econômica braba e me lembro da experiência de viver com pouco, comer não mais que o essencial.

Em Cuba tínhamos a comida exata. Lembro-me que no final de um longo dia de estudos, caminhávamos algumas quadras para comprar um pão por la libre. A expressão não significa comprar quantos pães quiser, mas sim que a compra era feita por fora da caderneta de racionamento.

Aprendi ali que as fantasias sobre comida às vezes mobilizam o imaginário das pessoas mais que as próprias fantasias eróticas. Nos grandes desastres, nas guerras, a falta de comida e o desespero solapam a dignidade humana, provocam regressões assustadoras.

Ser velho significou ter tido uma chance de testemunhar tudo e uma oportunidade de morrer que nunca sabemos antecipadamente se vamos aproveitar. Certamente o Google não responde a esta questão de Montaigne: aquele que ensinar as pessoas a morrer vai ensiná-las a viver.

Quando tinha pouco mais de 18 anos, fiz uma reportagem para a revista “Alterosa” sobre doença de Chagas, transmitida pelo barbeiro. Era num povoado do interior de Minas. Assunto tão sério que atraiu uma dupla de repórteres do “Saturday Evening Post”, na época uma revista importante. Chegaram de avião, o fotógrafo gostou de mim e me ensinou a fazer um establishing shot, uma imagem que descrevesse a história a ser contada. Ele subiu no pequeno cemitério, usou as cruzes como primeiro plano e mostrou o povoado no fundo.

Na doença de Chagas o coração é atingido, e as pessoas morrem de repente. Ao concluir meu texto na volta, o editor Roberto Drummond escreveu o título: “Aqui se morre como passarinho”.

Nessas ruminações de quarentena, não é que de certa forma tenho de reconhecer que a morte naquele tempo era mais suave que agora e o barbeiro, um inimigo melhor que o coronavírus? O tempos mudaram, poucos sentiram. Noventa por cento dos equipamentos de proteção aos médicos são feitos na China. Isso não é um tópico estratégico para quem pensa apenas na guerra entre os homens.

Só que há algum tempo, a principal guerra é dos homens contra a natureza. A estratégia não acompanhou os fatos. Alguém come um bicho na China e instala-se o caos.

Alguns velhinhos de hoje já avisavam sobre os efeitos dessa guerra, antes de o Google nascer.

É irônico ver agora como se discute com tanta sem-cerimônia sobre quantos por cento deles devem desaparecer. Para quê? Para seguir na marcha suicida que alguns chamam de progresso?

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