quarta-feira, 17 de junho de 2020

Bolsonaro inventa um papel de árbitro para os militares – Editorial | Valor Econômico

Investidas interpretativas a Constituição pelo presidente envenenam o ambiente político

As investidas interpretativas do presidente Jair Bolsonaro e seus ministros do Planalto sobre o artigo 142 da Constituição - as Forças Armadas seriam o poder moderador da República - são toscas, mas de alguma eficácia para envenenar o ambiente político. A versão capciosa do Planalto busca traçar uma linha no chão para as investigações sobre Bolsonaro e seus filhos, e o julgamento da chapa Bolsonaro-Hamilton Mourão no Tribunal Superior Eleitoral. Ultrapassada, acarretaria uma intervenção militar. Presidente, vice-presidente e Fernando Azevedo, ministro da Defesa, emitiram na sexta nota em que afirmam que, para as Forças Armadas “ordens absurdas não se cumprem” e nem tentativas de tomada do poder decorrentes de “julgamentos políticos”.

A deturpação constitucional tornou-se mais desafiadora por vir na sequência de uma liminar dada por Luiz Fux, futuro presidente do Supremo Tribunal Federal, em que esclarece que as Forças Armadas não são poder moderador e tão somente um “poder limitado”. A provocação presidencial traz enorme perda de tempo e esforço, além de criar uma atmosfera surreal. Fux respondia a uma ação do PDT contra uma eventual intervenção militar. Fux reafirmou o óbvio: a letra da lei não permite golpes. No entanto, eles acontecem.

Bolsonaro não age sozinho como agente provocador. Seu filho, deputado federal Eduardo Bolsonaro, disse que é natural o povo pedir a ação das Forças Armadas se estiver descontente com atos do Congresso e do STF. “Elas vêm, põem um pano quente e depois volta o jogo democrático”, concluiu. A última vez em que isso ocorreu, a democracia voltou depois de 21 anos de ditadura.

O secretário de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, na revista Veja, advertiu que quem se opõe ao governo não deve “esticar a corda”. Ramos foi claro: o governo não aceitará “julgamentos casuísticos”, como, por exemplo, o que o TSE fará com eventual “viés político”, se a chapa for cassada. Ou seja, o presidente não aceitará decisões da Justiça nestas questões.

Diatribes cotidianas contra o Supremo, que investiga esquemas de financiamento ilegal de fake news e de atos contra a democracia, estimulam reação dos fanáticos defensores de Bolsonaro, que no sábado lançaram fogos de artifício no prédio do STF. Mentiras repetidas sem cessar produzem efeitos também sobre as instituições. André Mendonça, ministro da Justiça, disse - e isso era uma condenação ao ato - que “a democracia pressupõe, acima de tudo, que todo poder emana do povo. Por isso, todas as instituições devem respeitá-lo” e que “todos devemos fazer autocrítica”. Quem ataca e quem é a vítima, no caso, não parece fazer a menor diferença.

A Procuradoria Geral da República, algoz de dois presidentes (Dilma Rousseff e Michel Temer) está mais calma no atual mandato de Augusto Aras. Aras afirmou, sobre o artigo 142, em entrevista a Pedro Bial que “se os Poderes constituídos se manifestarem dentro das suas competências, sem invadir as competências dos demais Poderes, nós não precisamos enfrentar uma crise que exija dos garantes uma ação efetiva de qualquer natureza”. Os garantes são as Forças Armadas. Ele mudou de posição em nota ulterior.

O presidente do Supremo, Dias Toffoli, um dia antes dos fogos sobre o STF, fiel a sua missão de tentar obter um pacto entre os Poderes, em um exercício augusto de ampliar pela boa vontade o sentido das palavras, advertiu o presidente sobre suas “dubiedades”. Depois reagiu ao foguetório de bolsonaristas. “O Supremo jamais se sujeitará... a nenhum tipo de ameaça”.

Uma dubiedade usada por Bolsonaro, e real, é se as aventuras antidemocráticas que executa e propala têm o apoio dos comandos das Forças Armadas, como sugere a todo momento, após colocar praticamente um quartel inteiro para trabalhar no governo (cerca de 3 mil militares) e reservar um terço do ministério a generais da reserva e da ativa. Não há como saber, mas se a premissa for falsa, Bolsonaro se enforcará com a corda que anda esticando, colecionando ilegalidades para julgamento futuro. As 8 ações no TSE e os 30 pedidos de impeachment na Câmara não parecem demovê-lo. Mas os processos no Supremo o exasperam, talvez pela possibilidade deles atingirem seus filhos e o “gabinete do ódio” que hospeda no Planalto.

Bolsonaro até recriou um ministério para livrar-se de um problema, a Secom, encarregada da comunicação do governo e das verbas publicitárias, transferindo-a à pasta das Comunicações. Não faz o menor sentido administrativo e organizacional, mas ele se resguarda de encrencas futuras.

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