segunda-feira, 29 de junho de 2020

Marcus André Melo* - A pandemia afetou a democracia?

- Folha de S. Paulo

Abusos ocorreram apenas nos países com 'comorbidades institucionais'

Difundiu-se o argumento que a atual pandemia teria exacerbado o processo global de erosão da democracia na última década. As evidências disponíveis até agora sugerem algo inteiramente diverso. Na maioria dos países, os freios e contrapesos têm atuado de forma robusta.

A deterioração ocorre só nos suspeitos usuais como a Hungria de Orbán ou as Filipinas de Duterte, e na franja de países que foram os últimos a serem atingidos por surtos esporádicos do vírus democrático, como Nicarágua e El Salvador, onde o retrocesso autoritário não significa outra coisa que uma “regressão à média”; a volta à normalidade autoritária.

Em outras palavras, a erosão da democracia em virtude de abusos do Executivo devido à situação de emergência só ocorreu onde havia “comorbidades institucionais”, tais como escassa experiência com regimes constitucionais, além de outras “patologias pré-existentes”. A Hungria, por exemplo, foi governada por ditadura comunista durante 50 anos ( 1949-1989) e por regimes autoritários ou ditaduras por várias décadas antes disso.

As evidências são do primeiro levantamento global sobre o assunto, intitulado “Binding the unbound Executive: checks and balances in times of pandemic”, de Tom Ginsburg e Mila Verteeg, que mapeia as respostas das instituições de “checks and balances” à pandemia em 64 países, inclusive o Brasil.

A conclusão geral é que “os países onde identificamos abuso de poder já eram propensos ao autoritarismo. Assim, os sistemas políticos que já eram vulneráveis à opressão são aqueles onde estão as respostas mais autoritárias”. O Poder Legislativo, o Judiciário e os governos subnacionais envolveram-se ativamente na contenção de abusos do Poder Executivo em 81% dos países: “os checks and balances permaneceram firmes na maioria dos países durante a atual crise sanitária”.

No Brasil, exemplos de iniciativas federais barradas são numerosos: redução do tempo de tramitação de medidas provisórias, suspensão de exigências das leis de transparência, divulgação de peça publicitária contra confinamento, entre outros.

Os abusos envolvem tipicamente recurso a dispositivos de emergência presentes em 90% das constituições atuais. Mas na amostra 85% dos países tinham dispositivos nesse sentido, mas só 36% fizeram uso dele. Desse grupo, 2/3 tiveram a emergência declarada pelo Parlamento. Nos casos mais extremos as medidas serviram para proibir manifestações e encarcerar inimigos.

Há uma especificidade não identificada: Bolsonaro estrategicamente fez pouco caso da pandemia para eximir-se de responsabilização, auto-incapacitando-se assim para uso de legislação de emergência.

*Marcus André Melo, Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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