quinta-feira, 18 de junho de 2020

Zeina Latif* - Escolhas arriscadas

- O Estado de S. Paulo

Juros baixos foram duramente conquistados; exageros fiscais e monetários podem ameaçar

Convém o Banco Central cortar ainda mais a taxa de juros Selic? Qual o benefício vis-à-vis ao custo?

Para alguns analistas essa pergunta nem deveria ser feita, afinal a taxa de inflação corrente (1,9% aa em maio) e as projeções (1,6% para 2020 e 3,0% em 2021) estão abaixo das metas (4% e 3,75%), em meio à elevada ociosidade de mão de obra e capacidade produtiva. A decisão de corte seria óbvia.

A questão, porém, é mais complexa pelos riscos envolvidos.

Para começar, o “painel de controle” do BC está avariado. Já discuti neste espaço que a queda abrupta da inflação reflete principalmente a restrição ao consumo por conta do isolamento social, não podendo ser tomada como sinalização para o futuro. A inflação de serviços, por exemplo, mais resistente, caiu bastante (de 3,9% há um ano para 2,7%) com a contração da demanda das famílias por serviços (-62% até abril), mas poderá acelerar em breve.

Há também riscos que precisam ser levados em conta, principalmente o fiscal. Ele poderá ser mitigado com a retomada de reformas estruturais. Porém, Bolsonaro não se mostra disposto, por ora, a encarar agendas polêmicas, como a necessária reforma administrativa.

Alguns analistas defendem que a Selic baixa contribui para reduzir o risco fiscal. Porém, se os juros básicos forem percebidos como artificialmente baixos, os juros de longo prazo que remuneram a dívida pública irão subir, pelo risco de uma volta mais rápida da inflação.

Não tem escapatória: inflação bem comportada e juros baixos de forma sustentada dependem do compromisso com a disciplina fiscal ao longo do tempo.

Não se sabe o limite para o corte da Selic, mas certamente está acima do observado em países ricos ou com contas públicas mais saudáveis. Taxas exageradamente baixas podem dar dor de cabeça, pela consequente pressão sobre o dólar. Juros muito baixos em um ambiente de riscos elevados reduzem ainda mais o interesse para investimento no País, de locais e estrangeiros, incluindo o financiamento do governo.

O fato de brasileiros terem ativos no exterior, obtendo ganhos de capital com o real fraco, não implica maior disposição a investir no Brasil.

Alguns argumentam que, em algum momento, a taxa de câmbio encontraria seu novo equilíbrio, produzindo uma melhora das contas externas com a redução de gastos no exterior e o ingresso de recursos atraídos pela queda dos preços de ativos brasileiros quando denominados em dólar (“o Brasil ficou barato”, dirão os investidores). O problema é o acidentado percurso até lá, sendo que volatilidade cambial elevada é veneno para o setor privado. Não é recomendável sobrecarregar o ajuste na taxa de câmbio.

A pressão cambial exacerbada machuca as finanças das empresas nacionais, pois eleva o valor (em real) da dívida externa (para este ano, as amortizações ultrapassam US$ 100 bilhões, sendo que a taxa de rolagem foi baixa em abril) e encarece os preços de insumos (atualmente os importados têm maior participação do que no passado). A valorização do dólar machuca o crescimento do PIB no curto prazo, agravando a crise.

O risco de uma surpresa inflacionária indesejada também aumenta. O baixo repasse do dólar aos preços nos últimos anos não está escrito em pedra.

O BC indica que prefere esticar a corda, aceitando o risco de ter de subir a Selic de forma mais rápida e mais intensa no futuro. Essa não será uma tarefa fácil.

O momento recomenda cautela. Outras políticas mais potentes no momento e focalizadas têm sido eficazes para estimular o crédito, como as medidas administrativas do BC e o socorro às empresas. O consumo tem reagido ao auxílio emergencial a indivíduos, a julgar pelos dados relativos ao uso de cartões de crédito. O montante de R$ 150 bilhões é expressivo à luz da renda gerada pela metade mais pobre do País, de menos de R$100 bilhões em 3 meses, segundo especialistas como Ricardo Paes de Barros.

Juros baixos foram duramente conquistados nas ultimas de décadas. Exageros fiscais e monetários agora poderão ameaçar essa conquista.

*Consultora e doutora em economia pela USP

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