domingo, 2 de agosto de 2020

Combate à corrupção não tem dono – Editorial | O Estado de S. Paulo

Brasil já deu provas de que pode combater seus corruptos sem precisar de salvadores da pátria

Mais uma vez, como era previsível, críticas recentes à Lava Jato, como as feitas pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, provocaram reações duras de certos círculos, que enxergam nesses reparos uma tentativa de acabar com a operação e, assim, minar o combate à corrupção no Brasil.

Em seus mais de seis anos de atuação, a Operação Lava Jato decerto amealhou muitos inimigos, especialmente ao encontrar provas que levaram à cadeia gente poderosa, acostumada à impunidade. Por essa razão, é provável que haja muitos corruptos que, fustigados pela força-tarefa sediada em Curitiba, estejam contando as horas para o fim da operação.

Mas é certamente exagerado considerar que a eventual extinção da Operação Lava Jato represente um golpe mortal na luta contra a corrupção. Nesses termos, parece que os 15 procuradores da Lava Jato são os únicos capazes de garantir a continuidade do combate aos malfeitos de corruptos em geral - como se não houvesse, dentro do próprio Ministério Público, outras centenas de procuradores interessados no assunto e igualmente competentes.

Há muito tempo a Lava Jato extrapolou seu escopo inicial, tanto em relação ao objeto que a motivou quanto a respeito dos métodos empregados em seu trabalho. Se tivesse terminado quando deveria, depois de alcançar estrondoso sucesso ao colocar na cadeia os responsáveis pelo escândalo do petrolão e recuperar bilhões desviados da Petrobrás, a Lava Jato ganharia merecido lugar na história como símbolo da vontade dos brasileiros de enfrentar com coragem a chaga da corrupção. Tendo passado dos limites razoáveis de duração, alcance e pretensão, a operação corre o risco de ocupar outro lugar na história, este bem mais sombrio: o de responsável pela desmoralização da política, transformando todos os políticos em corruptos em potencial.

Ao fazê-lo, a Lava Jato apresentou-se na prática como um partido cuja plataforma era promover o saneamento da política em geral. Não estava sozinha nessa missão: juntou-se a magistrados que se viam e ainda se veem como responsáveis por atuar não de acordo com a lei propriamente dita, mas segundo sua visão de país - num ativismo judicial que gera toda sorte de aberrações. Sem ter votos populares que justificassem sua atuação eminentemente política, esses servidores da Justiça no entanto se consideraram eleitos para fazer o que entendiam ser uma missão quase religiosa - messiânica mesmo.

Tal conjugação - chamada genericamente de “lavajatismo” - criou a atmosfera de terra arrasada que ensejou a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência e de centenas de outros políticos que prometiam praticar abertamente a antipolítica. Felizmente, as instituições democráticas, com seus freios e contrapesos, foram eficientes até agora em impedir que esses subprodutos do jacobinismo lavajatista inviabilizassem de vez a democracia. É exatamente o que está acontecendo com a própria Operação Lava Jato, que vinha se considerando uma instituição independente do Estado - fora, portanto, dos controles institucionais - e cuja continuidade a esta altura não encontra respaldo senão na presunção messiânica de que é a única capaz de combater a corrupção.

Não é. O Brasil amadureceu bastante nas últimas duas décadas na prevenção à corrupção, seja dando poder aos organismos de investigação e controle, seja na criação de ampla legislação para coibir desvios. Ainda estamos longe do ideal - o gigantismo do Estado permanece sendo um convite aos oportunistas e o sistema político dá margem a comportamento pouco republicano nas Casas Legislativas País afora -, mas é inegável que houve avanços. Nem todos dependeram da Lava Jato - que ainda não existia, por exemplo, quando os envolvidos no escândalo do mensalão, que estourou em 2005, foram investigados, julgados e punidos.

Ou seja, o Brasil já deu provas mais que suficientes de que é competente para combater seus corruptos sem a necessidade de recorrer a salvadores da pátria - que, nessa condição, reivindicam mandato infinito e se consideram desobrigados de prestar contas de seus atos.

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