- O Globo
A polarização
política contaminou as discussões sobre a crise sanitária
‘Já
enfrentávamos uma crise de ensino anterior à pandemia. Agora, estamos diante de
uma catástrofe de toda uma geração que pode desperdiçar potencial humano e
levar a décadas de atraso, exacerbando a desigualdade.’ António Guterres,
secretário-geral da ONU, concluiu dizendo que a educação merece o qualificativo
de atividade essencial: “Colocar os alunos de volta às escolas da forma mais
segura possível precisa ser a maior prioridade”. No Brasil, porém, o debate
sobre o tema foi virtualmente interditado.
As escolas particulares de Manaus reabriram há 35
dias, colocando 60 mil alunos em aulas presenciais. A cidade vive nítido
declínio da transmissão do vírus, mas está longe de erradicar o contágio. A
maioria dos modelos epidemiológicos e dos estudos em países que retomaram aulas
revelam riscos muito baixos. Nada, porém, parece capaz de evitar que as redes
públicas de ensino brasileiras sigam fechadas indefinidamente.
Um fator relevante é psicossocial: os pais temem
por seus filhos. Quando adotados padrões sanitários e de testagem apropriados,
é muito reduzida a probabilidade estatística de contágio entre professores e
funcionários e, especialmente, de complicações sérias em crianças. Obviamente,
o risco não é nulo — como, aliás, no caso de outras doenças contagiosas. E se
meu filho for o ponto fora da curva?
O medo tem um contexto. A polarização política
contaminou as discussões sobre a crise sanitária. O negacionismo bolsonarista
provocou uma reação dogmática, que domina a imprensa e a parcela mais
esclarecida da opinião pública: “Se Bolsonaro fala em abrir, exigimos fechar”.
No lugar do debate racional de custos e benefícios de cada restrição sanitária
específica, as vozes indignadas com a criminosa negligência do governo federal
refugiam-se no clamor genérico por lockdowns. Nesse passo, o pensamento
supostamente progressista limita-se a reproduzir a cartilha bolsonarista —
apenas virando-a pelo avesso.
Na prática, como quarentenas prolongadas são
insustentáveis, o clamor só contribui para moldar o ritmo e as formas da
reabertura inevitável. Os governos autorizam a retomada dos setores
politicamente organizados, capazes de exercer pressão eficiente, como templos,
escritórios, indústrias e shoppings. Escolas? As crianças não têm associações
de classe — e não votam. A política, não a epidemiologia, decide a sorte de
“toda uma geração” de brasileiros sem voz.
Fora do Brasil, há negacionistas de direita, como
Trump, e de esquerda, como o sandinista nicaraguense Daniel Ortega e o
nacionalista mexicano López Obrador. No Brasil, porém, a esquerda cavou sua
trincheira no quadrante mais extremo do fundamentalismo epidemiológico. O medo
elege: a bandeira da irredutível “defesa da vida” descortina caminhos oportunos
para a denúncia geral de governadores e prefeitos que, ao longo do tempo,
flexibilizam quarentenas. É nessa moldura que se inscreve a exigência da
manutenção de escolas fechadas “até a vacina”, já explicitada pelo candidato do
PT à prefeitura de São Paulo.
Os alunos não têm voz, mas os sindicatos de
professores têm — e utilizam poderosos megafones para sabotar o mero debate
sobre reabertura escolar. Manaus é mais um indício de que é possível reabrir
escolas com segurança nas cidades que descem a ladeira da curva pandêmica. Daí
surge a palavra de ordem “Não antes da vacina!” — que, nas condições atuais,
equivale a aguardar a descoberta do genuíno Santo Graal ou do mapa da Serra das
Esmeraldas. Escolas, só depois da Segunda Vinda de Cristo, diriam os chefões
sindicais, se empregassem a linguagem dos bispos.
Guterres não tem chance no Brasil. Bolsonaro, que
fingiu decretar a reabertura de quase tudo, nunca falou em abrir escolas. Aqui,
a elite segregou seus filhos em colégios-butique, cujas anuidades são mais bem
expressas em dólar, os governos de esquerda jamais se importaram com a tragédia
educacional retratada nas comparações internacionais do Pisa, e o governo da
extrema direita entregou o MEC a um analfabeto funcional malcriado.
Educação pública é bem supérfluo — eis o único consenso nacional.
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