- O Globo
Caetano é uma
hipótese de Brasil que gostaríamos que fosse a verdadeira
Para muitos brasileiros, o sol se levanta no fim da
tarde. Mas não por preguiça ou enfado da vida, mas porque é essa a hora em que
ferve a panela de uma cabeça privilegiada que só pensa em nós. Não por
caridade, mas por saber que a solidariedade é a única forma de amor que não
implica em propriedade do outro. E assim amamos e somos livres. Tudo o que ele
faz, escreve, diz e canta está sempre assinalado por essa ideia, à qual ele
parece dedicar vida e obra. Caetano Veloso é uma hipótese de Brasil que todos
nós gostaríamos que fosse a verdadeira.
Caetano é um homem de muitos amigos, sem nenhum
confidente especial. Não por falta de confiança, mas porque seus segredos estão
por aí, a boca larga e pequena, nas letras de suas canções, no que ele diz e
escreve. A poesia de Caetano não é nunca molenga, elegias ao que não importa.
Ela é sempre o resultado de uma mente em chamas, amorosa e combativa, que não
se deixa iludir pelo lugar-comum, mesmo que unanimemente vitorioso. Ele quer
sempre saber se o contrário não é melhor. Ou não.
Às vezes, quando penso em Caetano, penso em
conversas que já tive com Renata Magalhães (uma das produtoras de seu filme),
Antonio Cicero (grande poeta, amigo do peito) ou Susana de Moraes (ela faria 80
anos, no último dia 5, vizinha leonina de Caetano), seus amigos e eventuais
colaboradores. Os três adoram a hipótese de que o Brasil seja um ser cultural
de caminhos contraditórios e radicais.
Quando é moderno, o Brasil pode ser a vanguarda
experimental do mundo. Como foi com Tiradentes, um herói barroco do iluminismo
que acordava a humanidade; ou Santos Dumont, que se recusou a registrar a
invenção do avião, pois devia pertencer a todo mundo; ou Oscar Niemeyer, para
quem Brasília era a concretização em concreto de um modo de viver, em que todos
somos iguais. Mas, quando fica para trás, o Brasil é capaz de recuar à mais
selvagem Idade da Pedra, produzindo os mais nefastos e bárbaros costumes, além de
líderes equivalentes. Caetano foi sempre um dos primeiros, sem nunca resistir a
tentar convencer os segundos, já que tudo pode mudar um dia.
Com todo o respeito aos outros admiráveis artistas
e intelectuais do movimento, Caetano é seu líder ilustrado, o generoso criador
maior do Tropicalismo, praticando-o radicalmente e promovendo-o em que missão
estiver. Foi sua obra que o tornou o último estágio do nosso Modernismo, a
conclusão de uma operação nacional de criação tão bem-sucedida, a melhor em
nossa história, indo de Castro Alves a Roberto Carlos, dos Andrades de 22 aos
irmãos Campos do concretismo, de Sousândrade a Leminski, de Villa a Tom.
Tudo isso com extrema consciência (e, às vezes, um
certo pesar), como fica claro nesse trecho de seu livro de memórias “Verdade
tropical”, de 1997, sobre a canção “Tropicália”, batizada pelo produtor do
Cinema Novo, Luiz Carlos Barreto: “Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da
canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao
nosso ridículo”.
Conheci Caetano Veloso no início de 1966, às
vésperas do carnaval, no Mercado Modelo de Salvador. Éramos um grupo de cinema
que estava na Bahia para participar de um festival, numa época em que os
festivais ainda eram raros.
Lá para as tantas, já de madrugada, chegou ao
restaurante um menino com um violão embaixo do braço, parecendo muito mais moço
do que sua verdadeira idade. Alguém na mesa o conhecia, ele acabou sentando
conosco. Mas só se manifestou quando a conversa girou em torno da eterna
disputa, então na moda, sobre raízes culturais. Alguns dos nossos nacionalistas
do cinema arrasavam com a Jovem Guarda, quando Caetano pegou seu violão e
cantou “Quero que vá tudo pro inferno”, num andamento mais lento, mais
rebuscado, cheio de descobertas inesperadas. O silêncio se impôs na mesa e ele
repetiu a canção muitas vezes. Quando terminou, eu estava aos prantos.
Caetano Veloso nunca mais saiu de minha vida, mesmo
quando parecia não estarmos de acordo. Sexta-feira passada, ele fez 78 anos de
idade e espero que, para nosso bem, ainda viva o dobro disso. Que nos lembre
sempre de que gente é pra brilhar e não pra morrer de fome.
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