quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Farinha pouca, o pirão de sempre – Editorial | O Estado de S. Paulo

Respeitar os limites da responsabilidade fiscal implica mexer com regalias de corporações arraigadas nos Três Poderes

A uma simpatizante que na saída do Palácio da Alvorada lhe pediu mais gastos com a Defensoria Pública da União, o presidente Jair Bolsonaro, em tom de desabafo, disse que “está uma briga enorme por Orçamento” e que “cada vez mais diminui o montante”. Acrescentou que “está vindo muita gente com problemas justos” e cada um deles, “no final das contas, custa R$ 20 bilhões por ano e não tem dinheiro”.

A seu modo, o presidente tornou pública a costumeira disputa anual por espaço no Orçamento da União, cuja proposta tem de ser enviada ao Congresso até o dia 31 deste mês. É portanto neste momento que cada Ministério expõe suas necessidades e reivindica recursos para atendê-las, cabendo à equipe econômica organizar essas demandas conforme a receita esperada e dentro do que o presidente da República determinar como prioridade. Mesmo depois de aprovado, o Orçamento ainda pode sofrer contingenciamento de verbas, em razão de frustração de receitas.

Como o debate orçamentário dentro do governo ainda está em curso, não é possível saber, oficialmente, qual será a peça a ser apresentada para avaliação do Legislativo, e tudo o que se especule por ora se presta tão somente a alimentar o jogo de pressão pelos recursos – disputa especialmente feroz num contexto de grande retração econômica.

Também é importante lembrar que há uma ala bastante influente no Palácio do Planalto e na Esplanada dos Ministérios que deseja promover uma revisão do teto de gastos – eufemismo para manobras fiscais destinadas a aumentar a gastança sem se ater às responsabilidades previstas em lei. A mera perspectiva de que o Orçamento possa vir com corte de verbas destinadas à Saúde e à Educação em razão da crise, como se revelou nos últimos dias, joga água no moinho dos que advogam pelo fim do teto de gastos – uma causa que une a esquerda nacional-desenvolvimentista e a direita saudosa dos grandiosos projetos de infraestrutura da época do regime militar –, como se o teto de gastos fosse o responsável pela penúria de áreas tão importantes para o País.

Como se sabe, o teto de gastos, em si mesmo, não promove corte nenhum. Seu objetivo é tão somente limitar o crescimento dos gastos em geral, tendo a inflação passada como referência. Esse mecanismo confere um mínimo de controle sobre a trajetória das despesas, sem especificar qual deve ser privilegiada ou cortada. Uma vez estabelecido esse limite geral, cabe à sociedade, por meio de seus representantes políticos, escolher o que considera prioritário – e reduzir o financiamento do que for entendido como secundário. Assim, a fatia orçamentária destinada a áreas sociais relevantes como Saúde e Educação só sofrerá corte ou incremento se houver consenso político.

De nada adianta, ademais, reservar grandes volumes de recursos para essas áreas se o governo não tem competência para gastá-los. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União divulgada no mês passado constatou, por exemplo, que o governo havia conseguido executar menos de um terço das verbas destinadas ao combate à pandemia de covid-19, que já deixou mais de 100 mil mortos e ocasionou o colapso do sistema de saúde em diversas unidades da Federação.

Mas é mais fácil discutir como destruir o teto de gastos do que pensar em maneiras de adaptar o Orçamento aos limites da responsabilidade fiscal, pois respeitar esses limites implica mexer em algum momento com regalias de corporações arraigadas nos Três Poderes e em todos os níveis de governo. É algo que o presidente Bolsonaro não demonstrou nenhuma disposição para fazer, embora já esteja claro que o que nos trouxe até a presente crise foi o crescimento contínuo e exponencial dos gastos obrigatórios com servidores públicos e com uma Previdência disfuncional, além da generosa concessão de subsídios e benefícios para os privilegiados de sempre.

É o pirão dessa elite que continuará a receber farinha, seja muita ou pouca, a não ser que a sociedade, por meio dos canais democráticos, diga de uma vez por todas que isso é inaceitável.

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